Em 1939, numa sibilante e gutural grafonola que calava o ziziar de provençais cigarras, Jorge Luis Borges, em Nimes, vaporizava lamentos portenhos num borriço de alma. O tango, com Buenos Aires à distância, era uma experiência sinóptica. De um trago, escreveu “Pierre Menard, Autor de Quixote”, conto mascarado de recensão literária consagrado a um ficcional autor francês. Explicava Borges que Menard não copiou a novela do século XVII – criou, isso sim, condições para que no século XX nascesse como que pela primeira vez o texto. O rico e subtil palimpsesto – de páginas em tudo coincidentes com certos capítulos do “Dom Quixote” de Cervantes – teria agora, centenas de anos depois, de ser lido à luz do seu tempo. Reflectia o argentino sobre autoria e interpretação e postulava que o contexto e acto da leitura podem alterar o significado a qualquer obra. Mas, astuto e previdente, apresentou na mesma altura “A Biblioteca de Babel”, narrativa através da qual, inversamente, patenteava o absurdo de um universo em que se multiplicavam livros até ao infinito, sem sentido possível, em todas as variações, traduções e permutações: a algaraviada da repetição. Hoje, numa era – de sampling, karaoke e mash-ups em epidémica difusão mediática – saturada por referências estéticas em constante reprodução, e em que a realidade há muito ultrapassou antiquadas ficções, parece simultaneamente ingénuo e trivial tentar desvendá-la num processo que lhe espelhe os mecanismos. Ou seria, não fosse o mundo andar esquecido e, claro, se não existisse Tom Zé, que fez do plágio programa.
Em 2008, assinalando os 50 anos da bossa nova, Tom, apoiado em Arnaldo Antunes e desmultiplicando duplas com cantoras (Fernanda Takai, Mariana Aydar, Mônica Salmaso, Tita Lima, Andréia Dias, Márcia Castro ou, entre outras, Badi Assad), produziu, com “Estudando a Bossa – Nordeste Plaza”, um gesto revisionista que não encontrou tão lúcida equivalência entre as restantes acções celebrativas. Como Menard, que contradisse a ideia primária de que todas as épocas são iguais ou distintas, Tom esclareceu em disco que João Gilberto não podia ser de todos ou só de um. E, também ele, cumpriu os requisitos para que, na sua produção, se amansassem patos, mareassem barquinhos, amachucassem bolinhas de papel, replicassem Rosa e Doralice, pingassem bim e bom, enfim, se duplicasse o texto inaugural de João. Para isso, desafinou-se, viniciou-se, copacabanou-se e, com jobiniana insensatez, acorcovadou-se num barracão nas traseiras do tonalismo. Daí resultou uma deslumbrante metonímia, com acordes, toada, harmonia, palavras, despencados contraponto e síncopes, que, pela primeira vez, mostravam João como sempre foi: suspiro do samba, pai do que – numa música de tambores – a teoria musical apelida de “terminação feminina”, mas ainda, como Tom, vítima do ostracismo e filho do exílio – alguém que, insuficiente mas incapaz de aceitar que se silenciasse o seu canto, voltou em 1957 a um Rio de Janeiro que lhe tinha sido indiferente para, então, criar algo tão singular que só a genética tendência para a duplicação conseguiu transformar em género. Por isso aproveite quem, em Viseu e Guimarães, possa assistir ao que originaram décadas de conspiração: Tom Zé a fazer de João Gilberto a fazer de Tom Zé.
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