29 de maio de 2010

Aníbal Velásquez y su Conjunto "Mambo Loco 1962-1978" & "The Afrosound of Colombia Volume 1"

Isto começa a ter contornos de livros de aventuras. Porque na renovação de exaltantes experiências pós-coloniais se empenham febrilmente aqueles que, hoje, desenham a curvatura do groove à escala global e também porque na militância por causas esquecidas descrevem por vezes inflexões concordantes. No caso, Analog Africa e Vampisoul rumam à Colômbia no momento em que a Soundway anuncia “Palenque Palenque: Champeta Criolla & Afro Roots in Colombia 1975-1991” retratando de forma complementar as transformações estéticas aí ocorridas desde os anos 60. E relembrando que no único país da América do Sul a possuir costa pacífica e caribenha a compreensão da sua sociedade depende do conhecimento da geografia e demografia. Porque os acontecimentos aqui reproduzidos foram determinados pela fixação de populações escravas e de sua descendência nas regiões costeiras. Ou seja, para além da análise de fenómenos musicais, provocam estas antologias uma reflexão sobre identidades raciais e nacionais numa narrativa central de mestiçagem. 
Aliás, a popularidade do acordeonista Aníbal Velásquez – ainda em actividade – representa um exemplar processo de transformação e apropriação. Num instrumento sem tradição local, redefiniu a música costeña substituindo-se aos metais das orquestras e charangas e – num daqueles saltos evolutivos que tanto devem ao engenho – trocando no seu grupo bongôs por tarolas que em vez de pele animal se cobriam por chapas radiográficas. A expressão seca e dura que imprimiu em mambos e guarachas originou um vibrante híbrido cultural nesta compilação sintetizado em magra dezena de temas. Em contrapartida, a investida de Pablo Yglesias – autor de “Cocinando! Fifty Years of Latin Album Cover Art” – pelos arquivos da Discos Fuentes reúne 43 gordurosas fatias de desenfreada diáspora que funcionam ainda como uma retrospectiva de Fruko y sus Tesos, Afrosound ou Wganda Kenya. Num incendiário ponto de encontro entre África, América e as Antilhas, supera as locais cumbia, porro, vallenato e chicha, sugerindo o absurdo dos Kraftwerk perdidos em Miami, da dupla Perrey-Kingsley em exploração amazónica, dos Funkadelic liderados por Manu Dibango ou de Sun Ra dedicado ao benga queniano. Tudo num selvagem capitalismo musical que da marijuana passou para a cocaína e que, naturalmente, teria de acabar mal. 

22 de maio de 2010

Raul Seixas, Sérgio Sampaio, Edy Star e Miriam Batucada "Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta: Sessão das Dez"

Fizesse gala de algum tipo de conexão intelectual e ter-se-ia inscrito na História como um segundo “Tropicália ou Panis et Circensis”. E caso alguém por ele tivesse dado em ‘71, reconhecer-lhe-ia um ano depois ascendência sobre “Acabou Chorare”, o paradigmático álbum-esponja dos Novos Baianos. Porque vindo de produzir Leno em “Vida e Obra de Johnny McCartney”, Raul Seixas – com obscuros auxiliares de pouca sorte – aproveitava os créditos acumulados na CBS, e umas férias do seu Director Geral, para ensaiar um desconcertante e dispendioso manifesto capaz de levar o rock de propensão psicadélica às fronteiras do bolero, baião, xote, choro, seresta ou samba (aos quais jamais voltaria de forma tão declarada), com o fim de revolucionar a música brasileira.

Longe da pretensão dos seus conterrâneos – que tentando reflectir a iminência plástica da cultura popular dela se afastavam – antecipava a mensagem, tão inconformista quanto inconstante, que viria a concretizar com ‘Metamorfose Ambulante’ (“eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”), em ‘73 incluído em “Krig-Ha, Bandolo!”. Mas, por enquanto, a proposta desta Grã-Ordem – vinda então de um desconhecido, pois poucos teriam ouvido Raulzito e os Panteras ou lhe reconheceriam o nome nos créditos de Jerry Adriani ou Tony & Frankye – foi demasiado ousada para a censura (que lhe proibiu canções), arriscada para a editora e esquiva para o grande público, ficando nas entrelinhas de biografias artísticas e na esfera mitológica do coleccionismo.

E apesar de não ser bem o “disco voador” de que também fala – possui na sua essência aproximações melódicas aos Mutantes de “Jardim Elétrico” ou ao Tom Zé de “Se o Caso É Chorar” – esta “Sessão das Dez” terá agora outra relevância. Porque é hoje claro que na viagem até ao lugar cimeiro do rock no Brasil, com a série de semi-obras-primas gravadas até finais da década de 70, não voltou Seixas a empunhar o mundo regional contra uma ‘sociedade de consumo’ retratada em frases de tão presente acuidade como “p’ra quê pensar, se eu tenho o que quero? Tenho nêga, o meu bolero, a TV e o futebol”, a arriscar soluções formais de idêntico radicalismo (marchas circenses embatendo em frevos, vinhetas Belle Époque como jingles publicitários e arranjos acusmáticos da estirpe Zappa-Martin-Duprat) ou a comunicar tão desembaraçadamente as suas ideias. E isso vale ouro.

15 de maio de 2010

João Donato "Sambolero"

Na contracapa do elegante “Bud Shank & His Brazilian Friends”, de 1965, escreveu John William Hardy que João Donato tocava como uma possível resposta sul-americana a Tommy Flanagan. Impressionaram-lhe características que, como em tantos músicos dessa geração, de Red Garland a Sonny Clark, combinavam concentração e descontracção, graciosidade e excentricidade. Décadas depois – embora se aproxime mais em estilo a Horace Silver – será a Thelonious Monk que substancialmente se assemelha. Porque em ambos se encontra a visão do silêncio enquanto imponderável poética, tendência para o esoterismo harmónico, enfático discurso rítmico ou fascínio pela repetição de ideias melódicas. Mas também porque, tendo definido prematuramente as suas virtudes e a elas se mantido fieis, foram tidos como loucos e posteriormente reavaliados como génios. Tudo isto é relevante num álbum (com Luiz Alves no contrabaixo e Robertinho Silva na bateria) em que, quanto muito, alarga a cintura a clássicos (alguns com quase 50 anos) como ‘A Rã’, ‘Bananeira’ ou ‘Lugar Comum’ e mais uma vez prova que continua demasiado novo para a bossa nova.

8 de maio de 2010

"Lagos Disco Inferno"


Arranca numa ‘Boogie Trip’ de licenciosos contornos – entre o Marvin Gaye de ‘Got To Give It Up’ e os Rose Royce de ‘Do Your Dance’ – e setenta minutos depois é como se o “Saturday Night Fever” nunca tivesse acontecido. Porque esta compilação de invulgar origem (Nigéria, via “Voodoo Funk”, o blogue de Frank Gossner) e inesperado sentido de oportunidade (indiferente à canonização de Fela Kuti) apaga da memória o enlatado disco-sound que, longe dali, dos centros das cidades transferiu a ilusão de risco para o coração dos subúrbios. E em doze lúbricos, onanistas e extáticos passos, de lambuzadas linhas de baixo e libertinas malhas rítmicas não menos dependentes do funk, devolve gordura a um estilo que aspirou a carne e o tutano da década que o viu nascer. Além de retratar o instante – o do boom petrolífero – em que bandas nigerianas competiam com Ohio Players, B.T. Express ou Blackbyrds pelas pistas dos ostentosos clubes de Lagos. Há aproximações a KC & The Sunshine Band ou Heatwave, de África pouco mais se pressente que o espírito de ‘Soul Makossa’, e, inevitavelmente, tudo haveria de se extinguir – é que, como tinham já avisado os Tower of Power, ‘(There’s) Only So Much Oil In The Ground’. Uma revelação.

1 de maio de 2010

Amanaz "Africa"

A história é contada por Egon, responsável pela Now-Again, e, além de relembrar o atávico instinto predatório escrupulosamente transmitido entre coleccionadores de discos, dirige-se indirectamente à perniciosa natureza de blogues consagrados à eufemística ‘partilha de ficheiros’: encontrando o contacto de Rikki Ililonga, fundador dos pioneiros Musi-o-Tunya (também de Paul Ngozi), consigo trocou correspondência com o fim de recolher informações sobre o zam-rock, sua propriedade e acessibilidade; Ililonga conduziu-o a Keith Kabwe e Isaac Mpofu, cantor e guitarrista dos Amanaz e detentores dos direitos sobre as obras pelo grupo gravadas, e em meia dúzia de linhas se provou a ilegitimidade da reedição em LP de “Africa” (1975) pela alemã Shadoks (braço esotérico da QDK). Talvez motivado pelo absurdo de ver espoliados por cidadãos de países ricos aqueles que a estagnação económica de um país pobre levou a uma vida longe da música, Egon intermediou as negociações que garantiram legalidade ao seu relançamento – de igual sorte não gozaram ainda Ngozi Family ou Chrissy Zebby Tembo –, permitindo a celebração de um estilo que, resumindo, ressaca num amanhã irremediavelmente perdido os excessos cometidos na véspera por Cream, Can, Who ou Hendrix.