Em 1997, quando a Real World editou “Inner Knowledge”, o primeiro álbum a solo de Paban Das Baul, encontravam-se no mercado um par de livros sobre os Baul de Bengala e – há muito esgotados os volumes na Chant du Monde e na Folkways consagrados à seita devocional – mera meia dúzia de edições em CD com a sua música. Era pouco, mas, em meados dos anos 80, com menos se gerou no ocidente uma eufórica recepção a um parente no misticismo sufi, Nusrat Fateh Ali Khan. Entretanto, e perversamente, após a inclusão pela Unesco das canções dos Baul na lista de “Obras-Primas do Património Oral e Imaterial da Humanidade” – em que figuram o tango argentino, o samba de roda baiano ou, entre cerca de 160 elementos, as polifonias dos pigmeus da República Centro Africana – pouca coisa mudou. Desapareceram mais alguns discos e multiplicaram-se no YouTube os vídeos em que neófitos do ‘hippie trail’ em nobilíssimos actos de expiação perseguem pobres e desgrenhados trovadores pelas hortas e atalhos do delta do Ganges, trocando malgas de arroz pelo acesso à fonte de todos os avatares e ensinamentos sobre budismo tântrico, esotéricas práticas sexuais ou lições de ioga bhakti. Por essas e por outras se entregou Paban desde a sua estreia a degenerativas fusões de estirpe ‘asian chill’. Mas agora reencontra o caminho quem canta sobre o tempo – na realidade uma vida inteira – que leva um homem a conhecer-se. Produzindo, com estas brandas e ternas meditações sobre transitoriedade e eternidade, o mais intenso e distinto retrato daqueles que fazem do corpo o seu templo, retirando aos Baul a dimensão de firma de crédito de rectidão moral que, como uma piada de mau gosto, se lhes colava à pele desde que Bob Dylan posou ao lado dos irmãos Purna Das e Luxman Das na capa de “John Wesley Harding”. É que, escorrendo como água, surgem pela primeira vez estas melodias autónomas dos que, por vaidade, evocam a verdade num mundo que só a sabe trair.
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
26 de junho de 2010
25 de junho de 2010
José Miguel Wisnik e Arthur Nestrovski
Ontem, no Centro Olga Cadaval, foi, mais coisa menos coisa, assim, e dificilmente poderia ter sido melhor:
19 de junho de 2010
"Tumbélé! Biguine, Afro & Latin Sounds From the French Caribbean, 1963-74"
Em “The Hunter”, de 1982, uns Blondie já fora do prazo arriscaram um derradeiro arremesso conceptual com ‘Island of Lost Souls’, mandrião calipso com credibilidade insular no trompete do porto-riquenho Luis ‘Perico’ Ortiz e inclinação ‘primitivista’ em cinquenta segundos de uivos e cuícas a imitar araras e saguis. A canção inspirou-se na adaptação para cinema de “The Island of Dr. Moreau”, de H.G. Wells, produzida em 1933 pela Paramount e na qual, reagindo a um distante e nocturno clamor ritualista que se presumia de origem nativa, declarou Charles Laughton no papel do infame doutor: “they are restless tonight.”. Do mesmo filme saiu outra frase para a posteridade quando a personagem interpretada por Bela Lugosi levantou a crucial questão futuramente repetida pelos Devo: “Are we not men?”. De facto, por aí se escrutinar a condição humana em circunstâncias laboratoriais, muitas vezes se voltou à metáfora da ilha para atingir fins moralistas. Da “L’Île Mystérieuse”, de Jules Verne, ao “Lost”, de J.J. Abrams e Damon Lindelof, não faltam exemplos do fascínio exercido pelo cenário nas mentes ocidentais. Parece a cultura popular saber o que no contexto da bio-geografia ensaiou David Quammen em “The Song of the Dodo”: que “as ilhas são santuários e terrenos férteis para o único e o anómalo”. “Tumbélé!” vem reafirmá-lo de forma exuberante. E porque chega de um mundo perdido – umas Martinica e Guadalupe que nos anos 80 abraçariam o sucesso comercial do zouk esquecendo a patente aqui evidenciada – mais dramático se prova o reconhecimento de uma infecciosa e vagamente assimétrica evocação dos estilos de Cuba, Congo ou Haiti, aplicada aos locais beguine ou gwo-ka. São vinte temas de frenético exotismo, desmembrando ainda o jazz crioulo de Sidney Bechet, bombas, plenas e restante diáspora caribenha, e tudo reagrupando devidamente fora do sítio até se apagar a consciência regional e, como não poderia deixar de ser, restar apenas a fantasia.
12 de junho de 2010
"Ghana Special" & "Ghana Funk"
É sabido que o mercado da música africana é vulnerável a factores externos. E tornou-se evidente que dependia do gosto de não-africanos quando em 1987 permitiu a diluição do ‘afro pop’ na salada de frutas da ‘world music’ e se rendeu a fantasias criacionistas. Foi uma maneira de fazer pela vida que, de Cesária a Ali Farka, deu emprego a muita gente. Mas, de tão simplista e distante da realidade, alienava aqueles que recordavam dançar-se no Studio 54 o ‘Soul Makossa’ ou experimentar-se psicotrópicos ao som dos Osibisa e impedia a adesão do público indiferente ao mito da autenticidade. A música aqui reunida representa precisamente um instante de vertiginosa aceleração que torna redundante a presunção de imutáveis identidades culturais. Porque na sua prática implodem uns e outros, cópias e originais, até sobrar apenas o apetite pela alteridade. Ou seja, a aplicação do “Manifesto Antropofágico” de Oswald de Andrade regurgitado do outro lado do Atlântico pelos tropicalistas brasileiros, partindo do highlife e do afrobeat até engolir o cartaz do “Soul to Soul” (o concerto em Accra que em 1971 juntou Wilson Pickett, Ike & Tina Turner, Roberta Flack e Santana). Por isso, antes de Brian Eno (que aí produziu os Edikanfo), Mick Fleetwood (que aí gravou “The Visitor”), Paul Simon e Peter Gabriel (que empregaram ganeses nas suas bandas), eis Apagya Show Band, Cutlass Dance Band, Uhuru Dance Band, Hedzoleh Soundz ou African Brothers a contribuir para o enterro da ‘world music’ e a restaurar, como aliás deve de ser, a impureza africana bem no centro das nossas vidas.
5 de junho de 2010
“African Pearls: Pont Sur Le Congo”
Ainda se apalpa o terreno. Mas tudo indica que a reincidência do Congo no caminho do antologista servirá para contrariar os que procuram na exumação do ‘afro funk’ um sentido para a vida. Até porque começa o próprio mercado de reedições a torcer o nariz à fancaria do pensamento único. E tanto melhor se o seu reverso não se diluir num pluralismo de pacotilha entregue aos mais ingénuos impulsos humanistas. Nada é assim tão simples e, aliás, esta é uma história de sangue, vingança e inflexível rivalidade. Daí encerrar alguma ironia um subtítulo que evoca o tema de Franklin Boukaka gravado em finais de 60 com a Cercul Jazz: ao sonho de um Congo unido, e após se envolver num abortado Golpe de Estado em Congo-Brazzaville, respondeu-lhe em 72 um pelotão de fuzilamento. Que não se presuma vontade política nesta metafórica ponte – a comunicação que pressupõe tem tudo a ver com tráfico.E nem poderia ser de outra maneira. Fundamentalmente em Congo-Kinshasa (ou Zaire, a partir de 71), este foi um momento – aqui fixado entre 68 e 76 – de agitação criativa sem precedentes. Comprovam-no materiais efervescentes produzidos pelo lustroso Trio Madjesi, pela infalível Orchestre Lipua Lipua de Nyboma Mwan Dido, pelos desembaraçados Grands Maquisards de Dalienst Ntesa, pelas ondulantes vozes (Pépé Kallé, Dilu Dilumona e Papy Tex) de Empire Bakuba ou do trio Cepakos, pela recreativa Zaïko Langa Langa ou, inevitavelmente, pelas transparentes malhas entrançadas pela O.K. Jazz de Franco, Orchestre Vévé de Verckys ou por Docteur Nico (com a sua guitarra flutuando em uníssono com as de Dechaud e De La France na African Fiesta Sukisa). Não faz o retrato completo (aguarda-se a entrada na série de Thu Zahina, Nickelos, Manta Lokoka, Shama Shama, Stukas, etc) mas num Verão quente servirá para reduzir o suor a vapor.
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