O Expresso publicou listas com 50 discos de música popular, jazz e música erudita elaboradas pelos seus críticos (Ana Rocha, João Lisboa, Jorge Calado, Jorge Manuel Lopes, Raul Vaz Bernardo, Ricardo Saló, Rui Tentúgal) com a melhor das consequências: a salvaguarda da subjectividade. A mim pediram-me para escrever sobre o "disco da minha vida" ("Milagre dos Peixes") + sete dos meus preferidos + um (o de Carlos Paredes).
THE MUSIC OF THE BA-BENZÉLÉ
PYGMIES
Bärenreiter-Musicaphon, 1966
No segmento de
“Four American Composers” consagrado a Meredith Monk, Peter Greenaway pergunta-lhe
se há um elemento arcaico nas suas composições. Monk anui acrescentando que
buscou inspiração no muito primitivo mas também no futurista, criando uma
linguagem onomatopeica que, crê, tanto lembra populações antigas como antecipa
diálogos interplanetários. Podia estar a descrever as canções dos pigmeus. E
disso se lembrou Herbie Hancock quando, com o porvir em mente, gravou “Head Hunters”
– certificado com o galardão de ouro – utilizando uma melodia ouvida neste LP.
É música vocal da, e para a, floresta tropical centro-africana, com os seus
ciclos, sonhos, prazeres e desgraças. E, desde a sua descoberta, de Madonna aos
Deep Forest, serviu, sem nada pedir em troca, os interesses dos guardiões da
Era Aquariana. Quem a ouve deve-lhe a vida.
GUITARRA PORTUGUESA
Carlos Paredes
Columbia, 1967
Irrompe por
séculos, atravessado que está por poéticos modalismos medievalistas, decantados
fraseados românticos, enlevos líricos de puro virtuosismo, elegantes melodias renascentistas
ou reprocessadas rapsódias folcloristas. E, numa configuração exclusiva à
Lisboa dos anos 60, tempera esses elementos com uma atitude de resistência e um
desejo de transformação da sociedade tão modernistas quão socialistas. É o som
do cinema novo, da libertação da guitarra face ao fado (legado crucial da
família Paredes) e da insubmissão cultural. É um clamor contra a vida agrilhoada,
um ato de paixão de um homem que tinha aversão a canções de amor e a chamada para
a revolução que ninguém ouviu. Um governo, em ditadura, atirou o seu autor para
a cadeia e outro, em democracia, devolveu-o aos arquivos do Hospital de São
José. Foi nosso e nunca o merecemos.
GAMELAN SEMAR PEGULINGAN -
GAMELAN OF THE LOVE GOD
Nonesuch Explorer Series,
1972
Uma floresta virgem
de gongos, sinos e bambu para contar a criação do mundo, capaz de “expressar
todas as matizes, até as inomináveis, fazendo com que as nossas tónica e dominante
pareçam fantasmas”, como escreveu Debussy numa carta endereçada a Pierre Louÿs.
Da sua “Pagodes” às “Gnossiennes” de Satie, da “Miroirs” de Ravel ao
“Mikrokosmos” de Bartók, do piano preparado em Cage ao “Concerto para dois
pianos” de Poulenc, do “Prince of the Pagodas” de Britten à “Turangalîla” de
Messiaen ou da repetição em Reich à heterofonia polifónica em toques de
telemóveis, há uma narrativa ocidental que às delicadas filigranas da orquestra
de gamelão indonésia retorna como a um primeiro amor. Nunca como aqui – numa recriação
planeada por etnomusicólogos quando a sua prática estava já abandonada – soou
tal dedicação tão etérea, esotérica, exótica e necessária.
MILAGRE DOS PEIXES
Milton Nascimento
Odeon,
1973
E depois de 1972? Daqueles
doze meses em que eclodiu num só país matéria capaz de suplantar as reservas de
criatividade e fantasia armazenadas no mundo inteiro, conforme, para citarmos
meia-dúzia de obras-primas, comprovam “Acabou Chorare” dos Novos Baianos, “Vento
Sul”, de Marcos Valle, “Expresso 2222” de Gilberto Gil ou os homónimos álbuns de
Arthur Verocai, Jards Macalé e João Gilberto? E o que poderia Milton
acrescentar à arquitetura daquele edifício nesse mesmo ano enraizado num “Clube
da Esquina”, sedeado na confluência da Rua Divinópolis com a Rua Paraisópolis,
em Belo Horizonte, em que se combinou lição processual aprendida nos Beatles, conceção
filosófica lida nos índios, a mensagem de humanismo da nueva trova, o anseio de liberdade dos caiapós, tambus e dos sem-terra
e em que se alinharam as mais essenciais forças criativas de uma geração em
tudo periférica? Nunca se saberá. Porque a verdade é que a ação repressora da
ditadura militar, no seu período mais feroz, censurou quase integralmente as letras
de “Milagre dos Peixes”. Sobra uma quadra aqui, um verso acolá, provas da
inutilidade do ódio, do medo, da hipocrisia, de que todo o terror e atrofia
espiritual são provisórios. Ao prescindir de palavras, Milton (e Naná, Novelli,
Wagner Tiso, Paulo Moura, Nelson Angelo e Robertinho Silva), remetido para uma
caverna de gritos mutilados, cantos primordiais e choros de guerra enquanto lá
fora se queimavam livros, criou um manifesto de subversão em que todos os
resistentes encontraram as polissémicas cifras para o que procuravam. Na mais
politizada das mensagens, sugeriu que esta música se podia ouvir separada das
ideias acerca de si construídas. E relembrou que, privado da fala, o Homem não
regride a uma condição primitiva; imitando sons da natureza, evoca sempre as
emoções que a natureza desperta. E lembra que o processo da procura da beleza
possui, por si só, o mesmo valor cultural intrínseco ao de qualquer outro.
“Milagre dos Peixes”, encurralado, libertou-nos da retórica, criando o ouvinte
puro no mais maculado dos tempos.
LO DICE TODO
Grupo Folklorico Y Experímental Nuevayorquino
Salsoul, 1976
Chegar de uma ilha
em que até as pedras cantam para andar calado pelo cimento. Vir da pérola do
Caribe e ficar escondido na sombra de arranha-céus. Recordar aquele país lindo
e trigueiro e viver com vergonha da pele morena. Não. E menos ainda a partir da
“grande urbe latinocaribenha chamada Nueva York”, como lhe chamou Enrique
Romero em “Salsa: el orgullo del barrio”. De facto, para o efémero grémio de porto-riquenhos,
cubanos e brasileiros envolvidos em “Lo Dice Todo”, tratava-se aqui de
excarcerar comunidades, inventar uma nova cultura (numa espécie de folclore tão
distópico quão inclusivo) e dar corpo a uma panfletária oração por ora
sintetizada em sons: crus, vibrantes, catárticos, sincréticos, capazes de
arrancar o Bronx do chão e replantá-lo na África Ocidental, ou do inverso. Tocar,
como se fosse a música o próprio sangue.
LE
QUART DE SIÈCLE DE FRANCO DE MI AMOR
Franco
& Le TPOK Jazz
4
Vols. Edipop, 1981
Acordes telintam,
anunciando “cidadão, mostra respeito a dançar comigo!”, na interjeição de uma
mulher que, aplicando um sermão sobre decoro na pista de dança, conclui “estou
aqui porque não resisto à OK Jazz!”. Sob uma chuva miudinha de guitarras elétricas,
enrola cada sílaba na ponta da língua e arruma o assunto em dois minutos e meio
– faltam 15 para a canção terminar. ‘Bina Na Ngai Na Respect’, nesta celebração
dos 25 anos de carreira de Franco, representa exemplarmente uma singular disposição
sinfonista na rumba congolesa (o seu autor gravaria ainda quatro LP com Tabu
Ley Rochereau e só em 86 editaria seis álbuns em que dificilmente se encontram
temas com menos de 10 minutos). Triste, autoexilado, às avessas com Mobutu, e cada
disco revela-se um portento de liberdade e invenção, oxigénio para um continente
inteiro em lenta asfixia.
EN CONCERT À PARIS VOL.1
Nusrat Fateh Ali Khan
Ocora, 1986
Um ocidente enfermo,
e até à imprensa norte-americana, que o viria a adotar, este ‘Rei da abertura ao
sucesso’ chegou com ardor messiânico, não obstante advertências do género
‘ignorem a mensagem e concentrem-se no som’, o que excitava os sentidos mas negava-lhes
o êxtase. Ao vivo, o espírito do paquistanês mais pesado em palco intoxicava-se
com Alá, o Seu profeta, santos sufis, e levitava. E se lhe perguntavam qual era
a mensagem, ele respondia: “humanidade”. Num gelado novembro de 1985, em Paris,
o seu melismático canto ondulou sobre uma procissão de vozes, harmónios e
tablas e mostrou o caminho para a felicidade. Mais de dez anos depois, no
Instituto do Mundo Árabe, um empregado da Radio France tentava explicar-me o
que sentiu ao vê-lo no Théatre de la Ville numa dessas noites e perdeu-se,
absorto, os olhos cheios de lágrimas.
THE ROUGH DANCER AND THE
CYCLICAL NIGHT (TANGO APASIONADO)
Astor Piazzolla
American Clavé, 1988
Anos de luta, amargura, ressentimento, triunfo e fama
para isto. Regressar à Nova Iorque da sua infância, à cidade que, quando em Buenos Aires o tinham
como assassino, lhe serviu de casa longe de casa, e encontrar nos bolsos um
arsenal para sobreviver nas ruas: o tango enquanto morada do exílio, louca balada
apátrida vociferada nas esquinas, manual do desejo mais sórdido. Uma doença do
espírito para lá de geografia, natureza e comportamentos adquiridos. “Ponham-vos
raiva e uma arma nas mãos a ver se vocês não disparam”, disse-me em 1998 Kip
Hanrahan, o produtor, referindo-se a este disco. “A vida a acabar e ainda tudo
por fazer”, dizia-lhe Piazzolla. Tanta beleza, tanta paixão, um crime e um milagre:
100 anos num par de mãos, um casal trancado num abraço fatal, música mais
pesada do que a noite e um menino grande a ser criança pela última vez.
NEW ANCIENT STRINGS –
NOUVELLES CORDES ANCIENNES
Toumani Diabaté with Ballaké Sissoko
Hannibal, 1999
Para se compreender
a importância deste álbum há que viajar até à sua fonte. Não propriamente até
ao século XIII e à formação do Império do Mali, a que remonta tematicamente
parte do seu material, nem ao XVII, quando, no reino do Gabu, surgem relatos desta
harpa de 21 cordas, na qual, conforme disse Ablaye Cissoko, se depositaram as
“bibliotecas de África”. Não: basta ir até 1970, e aos duetos de kora registados por Sidiki Diabaté e
Djelimadi Sissoko, pais de Toumani e Ballaké, em “Cordes Anciennes”, lançado
pela Bärenreiter-Musicaphon ao lado de volumes dedicados a tradições fulani, songhai
e mandê, à música popular do Ensemble Instrumental du Mali e a expoentes de
música moderna como as orquestras regionais de Ségou, Mopti, Sikasso e Kayes ou a Rail Band. E verificar
que a ação desse tempo em tudo difere daquela encetada no final da década de
90. Se a primeira correspondia a um impulso de vale-tudo arquivista sob os auspícios
da UNESCO (com a música do Mali a encontrar abrigo nas grandes capitais culturais
europeias enquanto os seus autores, como Boubacar Traoré, procuravam pelas suas
ruas emprego na construção civil), já a segunda implica reconhecer-se a
existência de uma música clássica maliana com pelo menos oito séculos, revista
segundo preceitos que não ficam aquém daqueles que, por exemplo, conduziram Jordi
Savall à recuperação de cancioneiros medievais e trovadorescos. Ou seja, produzir
a mais cristalina evocação, em formas eminentemente contemporâneas (acentuando
cadências, fluências melódicas, cruzamentos rítmicos, texturas polifónicas), de
uma rara catedral de tolerância e devoção edificada na órbita do sagrado e,
porventura, civilizacionalmente arruinada em todos os domínios que não os
artísticos.