Entre sets, passava já da uma da manhã, Mat Maneri escondia a timidez com
um capuz. Quente e húmida, era uma daquelas noites de agosto que só existem na
imaginação e, nas traseiras do Hot Clube, em Lisboa, o violetista perseguia com
olhar cúmplice os gatos que mergulhavam na folhagem do Jardim Botânico.
Estávamos em 2000. De modo febril, falava de um sem número de projetos: do seu
disco a solo (“Trinity”, lançado no ano seguinte na ECM), de uma sessão com Joe
Maneri, Roy Campbell ou Barre Phillips (que veria a luz do dia como “Going to
Church”, na Aum Fidelity) ou da publicação de numeroso material de arquivo.
Tudo isto a sair em breve no seu próprio selo. Enquanto isso, no pátio, Gerald
Cleaver e Chris Lightcap trocavam impressões e, num casaco de ganga
impossivelmente justo, Joe Morris dirigia-se na nossa direção. Era o “Jazz em
Agosto” e durante três noites o quarteto do guitarrista deslocava a ação do
festival para a Praça da Alegria. “Somos amigos”, dizia Morris, à medida que
Maneri desaparecia no escuro: “Temos estilos diferentes, mas sempre que um de
nós tem alguma coisa a dizer o outro compreende-o perfeitamente. Acho que o que
nos une é querermos produzir boa música”. Numa conversa de circunstância conferia
importância ao rigor estrutural, dizia pouco simpatizar com formas de expressão
mais emotivas e, no entanto, confessava não fazer ideia o que lhe reservava o
futuro. Não sabia certamente que o seu quarteto haveria de se desentender e
voltar às gravações apenas com este “Balance”. Ou, muito menos, que continuaria
a evoluir ainda que inativo. Maior elogio não há.
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
28 de fevereiro de 2015
Moulinié: Meslanges pour la Chapelle d’Un Prince (Harmonia Mundi, 2014)
Ensemble Correspondances, Sébastien Daucé (d)
Não
se trata propriamente de um compositor bafejado pela fortuna fonográfica, este
Étienne Moulinié (1599-1676), quanto muito figurando em antologias consagradas
àqueles airs de cour e airs de ballets que se ouvem como uma
introdução à etiqueta cortesã de um mundo pré-Versalhes. A propósito, a par de
Antoine Boësset, François de Chancy ou Louis Constantin – aqui simbolicamente
presentes, conquanto a sua marca pareça feita por contraste – dá-se com o seu
nome de forma casual em representações do alvor do barroco francês que procurem
afastar a sombra de Lully. Dir-se-ia até possuir a vagueza própria dos períodos
de transição, a sua obra, de que deu mostras de adquirir consciência
precisamente na introdução da sua testamental “Mélanges de sujets chrétiens, cantiques, litanies et motets, mis en musique
à 2, 3, 4 et 5 parties, avec un basse continue” – que, em 1658, dedicou a
Margarida de Lorena, segundo casamento do seu patrono, Gastão, Duque d’Orleães
– quando escreveu: “No que concerne ao meu peculiar modo de compor, sinto-me
obrigado a observar que os mais arrojados dos meus gestos podem afigurar-se algo
licenciosos aos olhos daqueles que preferem a austeridade da maneira antiga
face aos prazeres da nova.” Aliás, escutar esta seleção de algumas das suas
páginas – cujo texto, compósito, não deixa de surpreender – é como subitamente
encontrar a tabuleta que aponta o caminho de Charpentier, Marais, François
Couperin e Rameau, ainda que num quadro de paradoxal puritanismo e desarmante
sutileza; longe da corte, e das suas tóxicas relações, é como viver olhando os
lírios do campo.
Etiquetas:
Antoine Boësset,
Clássica,
Ensemble Correspondances,
Etienne Moulinié,
François de Chancy,
Harmonia Mundi,
Jean-Baptiste Lully,
Louis Constantin,
Sébastien Daucé
21 de fevereiro de 2015
Red Garland Trio with Philly Joe Jones & Leroy Vinnegar “Swingin’ on the Korner: Live at Keystone Korner” (Elemental, 2014)
Em 40 páginas de depoimentos, lembranças
e indiscrições, esqueceram-se os organizadores desta edição de explicar a cronologia
exata destas 16 seleções, que não a que vagamente as situa na semana de 6 de
dezembro de 1977, de recordar outras passagens de Garland no Keystone Korner,
nomeadamente aquela que também nesse ano – embora procedendo de uma sessão de
março – resultou no lançamento de “Keystones!” pela Xanadu, e que já então
testemunhava uma galvânica relação com Jones e Vinnegar, ou, até, de mencionar
que, em 1983, 14 meses antes de falecer, no mesmo clube de São Francisco, como
aconteceu com Bill Evans, registou o pianista a sua discreta “last recording”. Ao
invés, o enfoque é colocado na ‘vida e obra’, como se o material agora reunido
tivesse origem na mão-cheia de anos, entre finais da década de 50 e inícios da
de 60, em que tudo o que em sonhos tocava aparecia num LP da Prestige, já para
não falar da sua essencial contribuição para as mais gerundiais produções de
Miles Davis – as de “Cookin’”, “Steamin’” e “Workin’” – em que patenteou uma
orquestral conceção do piano, harmonicamente densa mas jamais desprovida de
leveza, não especialmente veloz mas ainda assim capaz de antecipar as mil e uma
maneiras de resolver um problema musical, e em que improvisava de modo tão
prodigioso que parecia criar peças autónomas e simultaneamente tão absurdo que
excluía qualquer hipótese de premeditação. Aqui, ressurgindo após uma longa
travessia do deserto, revelava-se intacta a sua técnica e infinita a sua
imaginação.
Martha Argerich & Claudio Abbado “Complete Concerto Recordings” (Deutsche Grammophon, 2015) & Martha Argerich/Daniel Barenboim “Piano Duos” (Deutsche Grammophon, 2014)
Tem
ditado a convenção que se trate este material de modo antológico, tal a
simpatia que os nomes de Argerich e Abbado granjeiam. Mas a verdade é que apreciá-lo
é sobretudo ser complacente com uma insipidez presente logo na mais antiga das suas
colaborações, de 1967, quando com a Filarmónica de Berlim gravaram o “Concerto
para Piano Nº 1”, de Prokofiev, e o “Concerto para Piano em Sol maior”, de
Ravel. Aliás, basta ouvir o Andante na
obra do russo para se identificar uma orquestra em transe; no “Tema e Variações”
a solista toca como quem experimenta peças de roupa antes de comparecer numa
gala e o caráter romântico, rapsódico e desarrumado do andamento espevita-lhe a
companhia; já no Allegro ma non troppo
lá está o italiano de novo a tomar as rédeas com receio que a argentina parta
desgovernada rumo ao horizonte. Dir-se-iam ecos de uma natureza um tanto
volátil que ganha digna representação no Allegramente
do concerto de Ravel, em que as cordas e os sopros já não trabalham por turnos.
Mas não deixa de ser uma versão despossuída de maravilhamento, esta, com
dinâmicas quase incómodas se comparadas com as de Larrocha/Foster ou
François/Cluytens; por exemplo, quando no Adagio
assai se dá a entrada da orquestra espera-se que seja como o sol nascente a
despertar uma cidade, mas, aqui, é a insensibilidade a desarmar o ouvinte. Em
1984, com a Sinfónica de Londres, Abbado e Argerich regressariam a este
concerto, ficando tudo mais vibrante e colorido, como se no centro das
capacidades intelectuais do maestro novas áreas se acendessem, mas a pianista
permanece desinvestida, um adulto que resiste a abrir a mão para mostrar à
criança o doce que lhe comprou. Mais generosa está no Allegro maestoso do “Concerto para Piano nº 1”, de Chopin, apesar
de Abbado situar a ação em Viena em vez de Varsóvia, com Rubinstein às voltas
no caixão; no Romance está no domínio
dos laníferos noturnos e, não atingindo o postulado por Gulda/Boult, concede ao
Rondó atributos orgíacos. No “Concerto para Piano Nº 1”, de Liszt, embora soe a
conversa fiada de um virtuoso para o outro, e no “Concerto para Piano Nº 1”, de
Tchaikovsky, longe do universo de massa folhada de Horowitz/Toscanini, está
dominante. Por fim, de 2000, 2004 e 2013, esta última meses antes do
falecimento de Abbado, no apogeu daquilo que eufemisticamente se poderia
apelidar de fase de oracular serenidade do maestro, em que se pensa que o mal
do mundo se espanta com um copo de água com açúcar, chegam visões invertebradas
de concertos de Beethoven e Mozart. Também homeopáticos estavam Argerich e
Barenboim neste recital de abril de 2014 numa Berlim a braços com a peste
bubónica, a avaliar pelos sintomas na plateia, até que com uma inesquecível versão
a quatro-mãos da “Sagração da Primavera” acabaram com o inverno dos tempos.
Etiquetas:
Clássica,
Claudio Abbado,
Deutsche Grammophon,
Franz Liszt,
Frédéric Chopin,
Igor Stravinsky,
L.V. Beethoven,
Martha Argerich,
Maurice Ravel,
Piotr Ilitch Tchaikovsky,
Sergei Prokofiev,
W.A. Mozart
Subscrever:
Mensagens (Atom)