28 de fevereiro de 2015

Joe Morris Quartet “Balance” (Clean Feed, 2014)



Entre sets, passava já da uma da manhã, Mat Maneri escondia a timidez com um capuz. Quente e húmida, era uma daquelas noites de agosto que só existem na imaginação e, nas traseiras do Hot Clube, em Lisboa, o violetista perseguia com olhar cúmplice os gatos que mergulhavam na folhagem do Jardim Botânico. Estávamos em 2000. De modo febril, falava de um sem número de projetos: do seu disco a solo (“Trinity”, lançado no ano seguinte na ECM), de uma sessão com Joe Maneri, Roy Campbell ou Barre Phillips (que veria a luz do dia como “Going to Church”, na Aum Fidelity) ou da publicação de numeroso material de arquivo. Tudo isto a sair em breve no seu próprio selo. Enquanto isso, no pátio, Gerald Cleaver e Chris Lightcap trocavam impressões e, num casaco de ganga impossivelmente justo, Joe Morris dirigia-se na nossa direção. Era o “Jazz em Agosto” e durante três noites o quarteto do guitarrista deslocava a ação do festival para a Praça da Alegria. “Somos amigos”, dizia Morris, à medida que Maneri desaparecia no escuro: “Temos estilos diferentes, mas sempre que um de nós tem alguma coisa a dizer o outro compreende-o perfeitamente. Acho que o que nos une é querermos produzir boa música”. Numa conversa de circunstância conferia importância ao rigor estrutural, dizia pouco simpatizar com formas de expressão mais emotivas e, no entanto, confessava não fazer ideia o que lhe reservava o futuro. Não sabia certamente que o seu quarteto haveria de se desentender e voltar às gravações apenas com este “Balance”. Ou, muito menos, que continuaria a evoluir ainda que inativo. Maior elogio não há.

Moulinié: Meslanges pour la Chapelle d’Un Prince (Harmonia Mundi, 2014)




Ensemble Correspondances, Sébastien Daucé (d)

Não se trata propriamente de um compositor bafejado pela fortuna fonográfica, este Étienne Moulinié (1599-1676), quanto muito figurando em antologias consagradas àqueles airs de cour e airs de ballets que se ouvem como uma introdução à etiqueta cortesã de um mundo pré-Versalhes. A propósito, a par de Antoine Boësset, François de Chancy ou Louis Constantin – aqui simbolicamente presentes, conquanto a sua marca pareça feita por contraste – dá-se com o seu nome de forma casual em representações do alvor do barroco francês que procurem afastar a sombra de Lully. Dir-se-ia até possuir a vagueza própria dos períodos de transição, a sua obra, de que deu mostras de adquirir consciência precisamente na introdução da sua testamental “Mélanges de sujets chrétiens, cantiques, litanies et motets, mis en musique à 2, 3, 4 et 5 parties, avec un basse continue” – que, em 1658, dedicou a Margarida de Lorena, segundo casamento do seu patrono, Gastão, Duque d’Orleães – quando escreveu: “No que concerne ao meu peculiar modo de compor, sinto-me obrigado a observar que os mais arrojados dos meus gestos podem afigurar-se algo licenciosos aos olhos daqueles que preferem a austeridade da maneira antiga face aos prazeres da nova.” Aliás, escutar esta seleção de algumas das suas páginas – cujo texto, compósito, não deixa de surpreender – é como subitamente encontrar a tabuleta que aponta o caminho de Charpentier, Marais, François Couperin e Rameau, ainda que num quadro de paradoxal puritanismo e desarmante sutileza; longe da corte, e das suas tóxicas relações, é como viver olhando os lírios do campo.

21 de fevereiro de 2015

Red Garland Trio with Philly Joe Jones & Leroy Vinnegar “Swingin’ on the Korner: Live at Keystone Korner” (Elemental, 2014)



Em 40 páginas de depoimentos, lembranças e indiscrições, esqueceram-se os organizadores desta edição de explicar a cronologia exata destas 16 seleções, que não a que vagamente as situa na semana de 6 de dezembro de 1977, de recordar outras passagens de Garland no Keystone Korner, nomeadamente aquela que também nesse ano – embora procedendo de uma sessão de março – resultou no lançamento de “Keystones!” pela Xanadu, e que já então testemunhava uma galvânica relação com Jones e Vinnegar, ou, até, de mencionar que, em 1983, 14 meses antes de falecer, no mesmo clube de São Francisco, como aconteceu com Bill Evans, registou o pianista a sua discreta “last recording”. Ao invés, o enfoque é colocado na ‘vida e obra’, como se o material agora reunido tivesse origem na mão-cheia de anos, entre finais da década de 50 e inícios da de 60, em que tudo o que em sonhos tocava aparecia num LP da Prestige, já para não falar da sua essencial contribuição para as mais gerundiais produções de Miles Davis – as de “Cookin’”, “Steamin’” e “Workin’” – em que patenteou uma orquestral conceção do piano, harmonicamente densa mas jamais desprovida de leveza, não especialmente veloz mas ainda assim capaz de antecipar as mil e uma maneiras de resolver um problema musical, e em que improvisava de modo tão prodigioso que parecia criar peças autónomas e simultaneamente tão absurdo que excluía qualquer hipótese de premeditação. Aqui, ressurgindo após uma longa travessia do deserto, revelava-se intacta a sua técnica e infinita a sua imaginação.

Martha Argerich & Claudio Abbado “Complete Concerto Recordings” (Deutsche Grammophon, 2015) & Martha Argerich/Daniel Barenboim “Piano Duos” (Deutsche Grammophon, 2014)



 
Tem ditado a convenção que se trate este material de modo antológico, tal a simpatia que os nomes de Argerich e Abbado granjeiam. Mas a verdade é que apreciá-lo é sobretudo ser complacente com uma insipidez presente logo na mais antiga das suas colaborações, de 1967, quando com a Filarmónica de Berlim gravaram o “Concerto para Piano Nº 1”, de Prokofiev, e o “Concerto para Piano em Sol maior”, de Ravel. Aliás, basta ouvir o Andante na obra do russo para se identificar uma orquestra em transe; no “Tema e Variações” a solista toca como quem experimenta peças de roupa antes de comparecer numa gala e o caráter romântico, rapsódico e desarrumado do andamento espevita-lhe a companhia; já no Allegro ma non troppo lá está o italiano de novo a tomar as rédeas com receio que a argentina parta desgovernada rumo ao horizonte. Dir-se-iam ecos de uma natureza um tanto volátil que ganha digna representação no Allegramente do concerto de Ravel, em que as cordas e os sopros já não trabalham por turnos. Mas não deixa de ser uma versão despossuída de maravilhamento, esta, com dinâmicas quase incómodas se comparadas com as de Larrocha/Foster ou François/Cluytens; por exemplo, quando no Adagio assai se dá a entrada da orquestra espera-se que seja como o sol nascente a despertar uma cidade, mas, aqui, é a insensibilidade a desarmar o ouvinte. Em 1984, com a Sinfónica de Londres, Abbado e Argerich regressariam a este concerto, ficando tudo mais vibrante e colorido, como se no centro das capacidades intelectuais do maestro novas áreas se acendessem, mas a pianista permanece desinvestida, um adulto que resiste a abrir a mão para mostrar à criança o doce que lhe comprou. Mais generosa está no Allegro maestoso do “Concerto para Piano nº 1”, de Chopin, apesar de Abbado situar a ação em Viena em vez de Varsóvia, com Rubinstein às voltas no caixão; no Romance está no domínio dos laníferos noturnos e, não atingindo o postulado por Gulda/Boult, concede ao Rondó atributos orgíacos. No “Concerto para Piano Nº 1”, de Liszt, embora soe a conversa fiada de um virtuoso para o outro, e no “Concerto para Piano Nº 1”, de Tchaikovsky, longe do universo de massa folhada de Horowitz/Toscanini, está dominante. Por fim, de 2000, 2004 e 2013, esta última meses antes do falecimento de Abbado, no apogeu daquilo que eufemisticamente se poderia apelidar de fase de oracular serenidade do maestro, em que se pensa que o mal do mundo se espanta com um copo de água com açúcar, chegam visões invertebradas de concertos de Beethoven e Mozart. Também homeopáticos estavam Argerich e Barenboim neste recital de abril de 2014 numa Berlim a braços com a peste bubónica, a avaliar pelos sintomas na plateia, até que com uma inesquecível versão a quatro-mãos da “Sagração da Primavera” acabaram com o inverno dos tempos.