29 de agosto de 2015

Itzhak Perlman “Complete Recordings..." (Deutsche Grammophon, 2015)



O cunho da completude seduz até o mais zeloso dos colecionadores. E, aqui, que não precisamente a que prenda conteúdos ao feitiço da chancelaria da Deutsche Grammophon, nenhuma outra razão justifica que se colija o famoso CD em que Perlman acompanha Kathleen Battle num programa consagrado a árias de Bach ou, até, aqueloutro em que, sentado no pódio, de frente para a Filarmónica de Israel, o violinista teve Ilya Gringolts como vigário. Aliás, em rigor, sete dos 25 títulos desta antologia provêm dos arquivos da Decca, dando-se num deles, quiçá num esforço por preservar a integridade original de cada edição, com um apêndice tão despropositado quanto o de Ashkenazy e Harrell na sonata para violoncelo de Debussy. Diria um leitor mais avisado que a Universal tenta encher com as entradas os comensais nas lojas de discos antes que chegue o prato principal: “The Complete Warner Recordings”, 77 CD com origem nos inesgotáveis e, no caso de Perlman, inigualáveis espólios da RCA, His Master’s Voice ou EMI, e lançamento agendado para finais de setembro, a que se seguirá, avulsamente, a comercialização em outubro de muitos dos seus mais vitais registos (concertos de Mendelssohn, Bruch, Bach, Brahms, Sibelius ou Tchaikovsky). Entretanto, a mesma Warner colocou ontem no mercado o triplo “The Perlman Sound” e a DG respondeu com uma novidade: sonatas de Fauré e R. Strauss, com Emanuel Ax. Se este parágrafo fosse uma piada, o seu remate seria assim: Perlman não fica mais controverso do que isto.

Itzhak Perlman fará 70 anos na próxima segunda-feira. Possui uma premiadíssima discografia e será, porventura, o mais consensual entre os violinistas no período que coincidiu com o declínio de Heifetz, Milstein, Oistrakh, Grumiaux, Stern ou Menuhin – é-o também entre os presidentes dos EUA, agraciado por Reagan, Clinton, George W. Bush ou Obama. Figura televisiva desde a ida ao “Ed Sullivan Show”, em 1958, quando pôs um país inteiro a comentar o talento de um menino de muletas vindo de Telavive (Perlman contraiu o vírus da poliomielite em criança e habitou-se a olhares de ansiedade e admiração por entrar em palco numa scooter para pessoas com mobilidade reduzida), cada aparição sua na “Rua Sésamo” forçou luthiers a horas extraordinárias. Isto é, se a sua história entrasse no domínio da fantasia seria descrita como uma força ao serviço do bem, ainda que um cínico fique indiferente a tamanha bonomia. Para esse, nesta caixa, destaquem-se os concertos de Berg (aí, ninguém contrabandeou a tonalidade como Perlman) e Elgar, em que está devastador, a “Sinfonia Concertante”, com Zukerman e Mehta, e duas incisivas integrais: as sonatas de Beethoven, com Ashkenazy (em especial a “Kreutzer”, a “Primavera” e a sexta, em Lá maior – basta comparar com o que haviam feito Menuhin e Kempff poucos anos antes), e as de Mozart, com Barenboim (em particular a K377, em Fá maior, e as K378 e K454, em Si bemol maior). Porque a verdade é que Perlman – a tocar folclore judaico, música para filmes ou a pôr um pezinho no jazz, por sinal calorias daqui ausentes – não consegue evitar o virtuosismo mais do que é capaz de fazer cara séria nas capas dos seus CD. A isso, há quem chame simplesmente virtude.

22 de agosto de 2015

Gal Costa “Estratosférica” (Sony, 2015)



Parece que o assunto é cabelo. Ou, melhor, que a sua falta é a raiz do problema. E, no Brasil, país em que se conjuga o escândalo como um verbo, insuspeitas publicações como a Folha de S. Paulo ou o Globo vieram a público pedir explicações: “Cortei meu cabelo, me arrependi e aí resolvi botar esse aplique”, esclarecia Gal Costa por ocasião do lançamento de “Estratosférica”. É uma matéria importante. Como aquela canção que um dia Caetano Veloso escreveu a partir de um desencontro com o litoral de Gal, que ela cantou em “Índia” (1973) e na qual ele concluía que “uma mulher é sempre uma mulher etc. e tal”, é até mesmo “da maior importância”. Afinal, a partir de palavras de Gilberto Gil – que, recorde-se, a par de Caetano, teve a carapinha rapada na prisão por militares entendidos na lenda de Sansão –, já Gal assim dizia no seu segundo LP de 1969: “Cultura e civilização/ Somente me interessam/ Contanto que me deixem meu cabelo belo/ Meu cabelo belo/ Como a juba de um leão”. Ela que, muitos anos depois, em “Plural” (1990), via Jorge Ben e Arnaldo Antunes, viria a sugerir que “Cabelo vem lá de dentro/ Cabelo é como pensamento”. Tudo isto para lembrar que em Gal nada é acessório. E que, ao longo de cinco décadas de uma carreira ímpar, raras foram as vezes em que não enjeitou a engendração de próteses memorialistas. No seu melhor, “Estratosférica” vem confirmá-lo.

Gal tem afirmado que este seu novo álbum, e “tudo o que tem feito ultimamente, começando por ‘Recanto’, é rutura, vanguarda”. Mas também tem dito que a ideia, agora, era “fazer um disco fresco, jovial, palatável”. À medida dessa ambição tirou umas delirantes fotografias em que, 30 anos depois de “Profana” (1984), torna a representar uma gueixa ou a moda cabúqui. Ela, que há muito mais que isso vem personificando a ‘Musa Cabocla’, de Waly Salomão: “Mãe matriz da fogosa palavra cantada/ Geratriz da canção popular desvairada”. Mas, precisamente com as canções que Caetano para si escreveu em “Recanto”, logo após ter feito justiça a um antigo e premonitório verso de António Cícero – “Sou de carne e osso e eletrónica” – seria inevitável esperar-se por mais. É o que se lê no poema de ‘Sem Medo Nem Esperança’, outra vez de Cícero, com que “Estratosférica” abre: “Nada do que fiz/ Por mais feliz/ Está à altura/ Do que há por fazer”. Mas, aqui, são poucas as ocasiões em que os compositores ao seu serviço se desembaraçam de arquétipos e se provam à altura do que aqueloutra canção de “Profana” postulava: “Passado-futuro-presente/ Fundido e confundido na minha mente”. Também os arranjos de Kassin possuem menor capacidade de síntese face aos do registo anterior. Destacam-se ‘Por Baixo’ (Tom Zé convocando o lúdico e o lúbrico), ‘Anuviar’ (a poética da síncope segundo Moreno Veloso e Domenico Lancelotti), ‘Dez Anjos’ (libelo de Milton Nascimento e Criolo) e o derrame de melodistas como Marisa Monte e Marcelo Camelo. Aí, Gal volta a ser o pacto entre canto e ato, o nexo entre texto e sexo. A que gritou ‘Meu Nome é Gal’, etc. e tal.

Marilyn Crispell/Gerry Hemingway “Table of Changes” (Intakt, 2015)



Só para contrariar, classificava-se o que ao piano fazia Marilyn Crispell como o resultado de uma patologia de diagnóstico particularmente difícil. Em março de 1998, no “Piano Jazz” (o programa de Marian McPartland na rádio pública norte-americana), a anfitriã confessava nem sempre perceber lá muito bem o que se estava a passar. Depois, tocavam em conjunto ‘All The Things You Are’ e a radialista interrogava-se como é que era possível Crispell estar “tão fora” num instante para logo de seguida se mostrar “tão dentro” da tradição. “São coisas que em mim convergem”, respondia-lhe a convidada. Mas a verdade é que, desde então, em consequência de criogénicas gravações na ECM, tudo isso são coisas que se têm mantido em separado. Longe vai o tempo das obras-primas na Leo, o de “For Coltrane”, “Gaia” ou “Santuerio”, em que até as ações de Crispell – quando fazia workshops em Woodstock, por exemplo – pareciam possuir a concisão e a objetividade da poesia. Por sinal, o tempo em que era continuamente comparada a Cecil Taylor por aquele tipo de críticos que se fossem ao circo não seriam capazes de ver para lá do pelo na cara da mulher barbuda. De “Table of Changes”, registado em maio de 2013 numa digressão europeia com o mais empático dos seus colaboradores, dir-se-ia o ponto em que toda esta história de novo coalesce. Organiza-se sob o signo da descontinuidade, mas também dos encontros casuais, é prenhe em alterações de humor, revela algum cansaço e mais afeto. Um momento monótono? As oito repetições da mesma nota em 'Ev’ry Time We Say Goodbye'. Mas aí a culpa é de Cole Porter.

De La Guerre: Chamber Music (Pan Classics, 2015)



A cena não é difícil de imaginar: em Versalhes, c. 1670, por entre perucas brancas e apliques dourados, Claude Jacquet, organista e proprietário de uma luteria, conduz uma menina pela mão até ao cravo, miniatura de madeira exótica num mundo de mármore e porcelana. Ela começa a tocar e Luís XIV finge prestar atenção até ao momento em que presta mesmo e em que o silêncio em seu redor se desfaz em sedas. Aos cinco anos, Elisabeth-Claude Jacquet era um concentrado de delicadeza, engenho e fantasia. Deliciado, o Rei Sol concede-lhe uma subvenção vitalícia e, acenando com a cabeça a Madame de Montespan, assegura-lhe a educação. Há um relato de julho de 1677, publicado no Mercure Gallant, em que se conta que ela lia “a música mais difícil à primeira vista”, que, ao cravo, se acompanhava “a si mesma e a outros tocando de um modo inimitável”, que compunha “peças originais” e que as interpretava em “qualquer tom que se lhe pedisse”. De modo atípico, até, e tudo isto se conta em “Five Lives in Music”, de Cecelia Hopkins Porter, Elisabeth manteve uma carreira de instrumentista, compositora e tutora mesmo após o seu casamento com Marin de La Guerre, em 1684. Para a posteridade fica a fama – e a descrição das suas “improvisações de meia hora” em concorridos ‘salões musicais’ – e parte de uma obra que representa um momento perfeitamente pivotante na produção musical do seu tempo: o da réunion des gouts entre os estilos francês e italiano, em que se distinguiu e de que são exemplo precoce as suas preclaras sonatas e suítes para violino e cravo. Nasceu há 350 anos e consigo ainda se aprende.

15 de agosto de 2015

Charles Lloyd “Wild Man Dance” (Blue Note, 2015) & Sokratis Sinopoulos Quartet “Eight Winds” (ECM, 2015)


A Charles Lloyd, que tem responsabilidades na matéria, é costume colar-se a colónia barata das fórmulas gastas. E, escorrendo da pena daqueles que durante anos a fio o imaginaram de pernas cruzadas a meditar sobre o futuro da espécie, cada novo gesto seu gera um sem número de platitudes. Por exemplo, fala-se agora generalizadamente de um “regresso à Blue Note”, como se a fortuita edição de “A Night in Copenhagen” (1985) não tivesse correspondido a um volucre estágio na biografia do saxofonista. Pior, deste vertiginoso “Wild Man Dance”, que logo traz à memória os seus voláteis discos na Atlantic e, até, a sua perfumada parceria com Gábor Szabó, cedo se disse que refletia “qualidades espirituais e ascetas da cátedra de Lloyd na ECM” (Thom Jurek, no Allmusic), como se a sua solicitação ao dogma não fosse por natureza multívoca. Pois a verdade é que esta suíte de seis andamentos – para um renovado quarteto (Lloyd, com Gerald Clayton ao piano, Joe Sanders no contrabaixo e Gerald Cleaver à bateria) e dois coloristas da estirpe de Sokratis Sinopoulos (na lira cretense) e Miklós Lukács (em címbalo magiar) – não parece servir tanto para ilustrar ideias indiscutíveis quanto para criticar a própria conceção do multiculturalismo. Aliás, como escreveu Amin Maalouf por ocasião de outro encontro entre sensibilidades do ocidente e do oriente (operado esse por Jordi Savall), mais que “um diálogo entre culturas, teremos forçosamente de caminhar no sentido de um diálogo entre almas”. Sabe-o Lloyd e não o ignora o grego Sinopoulos neste seu brando manifesto contra a desagregação do humanismo.

La Reverdie “Venecie Mundi Splendor” (Arcana, 2015)



Incoercível, a advertência de Grocheio em “Ars musicae” (c. 1300) inaugurou um ilustre mandato para o moteto, desviando-o da “plebe” e intimando-o à presença de “gente letrada”, mais precisamente daqueles que se supunham capazes de “apreciar a arte subtil”. Isto em França. Já em Veneza, soubesse o teórico alguma coisa acerca da vileza envernizada dos doges, há que convir que o melhor seria mesmo não se deixar grande margem à imaginação. O que quer dizer que, em termos hermenêuticos, Claudia Caffagni teve a vida facilitada. Há aqui um “Ave corpus sanctum gloriosi Stefani”, atribuído a Marchetus de Padua, em que se invoca o martírio de Santo Estêvão (o “nome do primeiro sangue derramado”) para, enfim, rogar “Vem até nós ó Santo, abençoado protetor de Francesco, atual doge dos venezianos”. Depois, surge um curioso “Marce Marcum imitaris”, de autor anónimo, que faz a vénia a Marcos Evangelista (“Ó Marco, tu imitas Marcos no esplendor da honestidade”) apenas para prestar vassalagem àquele que, então, consignava “o nobre ducado à prole dos Cornaro”. Dívida que também Antonius Romanus reconhece em “Stirps Mocinico” face à “estirpe veneziana dos Mocenigo”, enquanto pede a S. Marcos que recomende “Tommaso a Deus, nosso Senhor”. Mais explícito ainda, com “Christus vincit”, Hugo de Lantins dobra o joelho perante Francesco Foscari, “ínclito doge de Veneza, Dalmácia e Croácia” e “soberano de um quarto e meio do Império Romano”. Ou seja, está tudo ali ao pé da letra: Francesco Dandolo, Marco Cornaro, Tommaso Mocenigo, Francesco Foscari em laudas prontas a fazer inchar em proporções basilicais o ego de um século de doges. Ouvindo-as, dir-se-ia que o La Reverdie não se constrangeu por tamanha literalidade. Ao invés, propõe esta levíssima reconsideração de uma música de que quase nada se sabia, situada entre 1330 e 1430, deixando pesar-lhe pouco mais que “a sugestão de melancolia”, como escreveu Jan Morris em “Veneza”. Porque, apesar de se dar na gravação pelo catarro desses varões perdidos entre brejos, brumas, bolores e bronquites várias, a verdade é que as Caffagni e Elisabetta de Mircovich cantam como se lhes fosse faltando o chão sob os pés. Em Veneza, nada mais apropriado.