8 de agosto de 2015

Entrevista a Wadada Leo Smith



Aos 73 anos, o trompetista e compositor norte-americano Wadada Leo Smith é um dos mais distintos conceptualistas do jazz contemporâneo e uma figura incontornável na sua história recente. Tocou em conjuntos de R&B, militou na AACM, gravou com luminárias da sua geração, estudou músicas de África e do Médio e Extremo Oriente e dedicou-se desde muito cedo ao ensino, de certa forma condicionando a efetiva documentação da sua produção artística e limitando a notoriedade que tal habitualmente acarreta. Ainda assim, destacam-se na sua discografia inicial títulos como “Reflectativity”, “Divine Love”, “Spirit Catcher”, “Go in Numbers” ou “Human Rights”. Desde 2000, no entanto, ano em que fundou o Golden Quartet, tem vindo a assumir uma posição de maior proeminência, editando o seminal “Ten Freedom Summers” em 2012, a que se seguiram uns não menos magistrais “Occupy the World” e “The Great Lakes Suites”. Contando a seu lado com Henry Threadgill, John Lindberg e Marcus Gilmore, é este que o leva hoje ao festival Jazz em Agosto, em Lisboa. E foi essa a razão para uma longa conversa telefónica, num momento em que, após cerca de duas décadas a exercer funções no prestigiado Instituto das Artes da Califórnia, o ‘CalArts’, o professor Smith acaba de se reformar.

Como vai a vida de reformado?
Bem, se quer que lhe diga sinto-me como se tivesse chegado ao fim do arco-íris. Quero dizer, enquanto durou, a experiência do ensino foi boa. Mas a verdade é que a minha vida tem sido muito melhor desde que me aposentei.

Em conversa com músicos afetos à improvisação, e com um longo historial de dedicação à docência, fiquei sempre com a impressão de que, na academia, se valorizava mais a sua tendência natural para fazer perguntas do que propriamente a sua capacidade de fornecer respostas. Era também o seu caso?
Bom, é verdade que desenvolvi metodologias muito próprias ao longo destes anos. Algumas delas interdisciplinares. Mas nunca me agarrei a um conjunto de pressupostos fixos. Nem mesmo, como reconheço ser frequente, a esse tipo de método, assim…

Algo socrático?
Sim. Dava-se mais o caso de eu avaliar um aluno ou uma aluna para averiguar ao certo aquilo de que mais necessitavam. Podia fazer-lhes sugestões e permitia que as assimilassem à sua maneira. Se dessem com algum problema, então, aí, levantava-se a questão de como solucioná-lo. Portanto o meu papel era mais o de equipá-los com ferramentas essenciais à resolução de problemas. Isto, porque criar arte é também saber tomar uma série de decisões de múltiplo alcance a cada momento, para cada momento. Quem não tiver habilidade para isso não chegará a ser artista, parece-me.

A propósito, há algum tempo que colegas seus falam da improvisação como um modelo para a resolução de conflitos. O que acha da ideia?
Eu sei que muito se tem escrito nesse sentido. Mas não me parece que assim seja, nem considero que as escolhas que estão na base dessa afirmação surjam imbuídas de princípios espirituais. Na música, o verdadeiro ato de improvisar não tem nada a ver com o que normalmente se apelida de improvisação livre ou improvisação não-idiomática ou o que lhe quiserem chamar. Isso são muros que as pessoas erguem para satisfazer o seu ego e o seu próprio sentido de nacionalidade.

São uma prisão com outra qualquer?
Talvez, na medida em que não transcendem o seu condicionamento. Embora conceda que ao analisar tecnicamente solos de Charlie Parker, Miles Davis, Booker Little, John Coltrane ou Albert Ayler se possa falar em resolução de conflito. Mas, repito, nada disso tem a ver com essa conversa da ‘Improvisação Livre’ com letra grande, como um chapéu em que tudo cabe por baixo. Na arte, o mais importante é a criatividade, não o método. Isso, sim, é o grande aglutinador. Ao compor, improvisar, dançar ou ao esculpir um pedaço de madeira, é a criatividade que cola umas coisas às outras. Falar de outra forma, com ênfase na metodologia, reflete más escolhas. Esses músicos que se apresentam exclusivamente como ‘improvisadores’ puseram-se entre a espada e a parede. E terão de ficar aí para sempre, a desperdiçar uma vida inteira por não conseguirem sair do buraco em que se enfiaram.

Lembro-me de ouvi-lo falar precocemente em organizar sons como eles se organizam na natureza. Acho que isso está naquele documentário alemão de 1971…
O “See the Music” [de Theodor Kotulla]. Referia-me à condição de sermos como uma ideia, como o fruto de uma inspiração. E de nos deixarmos afetar pela passagem do tempo. Ou melhor, de termos essa experiência mais ontológica de um tempo que pode partir do agora e atingir o infinito, se quiser. Mas como não está ao nosso alcance retê-lo na sua totalidade vamos descobrindo-o aos poucos, como quem vai desvendando um a um os mistérios da criação. E, aí, partilhamos dessa inspiração que lhe esteve na origem, ainda que à nossa volta tudo esteja em mudança permanente. E isso permite-nos transcrever essa inspiração para algo de vivo, orgânico, fluído, por sua vez também em constante transformação.

Diria que o Golden Quartet expressa essa sua intuição?
Sim. Foi para isso que o criei: para servir de veículo a uma música pura que estava já formada em espírito antes ainda que nos propuséssemos a tocá-la. Escolho trabalhar com músicos que partilhem dessa predisposição. E no “The Great Lakes Suites” dá-se o mesmo. Algo que se disponibiliza a ser tocado por essa vontade divina. Também os planetas que se movem pelo espaço têm as suas rotas definidas e também elas se alteram. Como o sol, ou melhor, como a nossa consciência de tudo o que muda desde que o sol nasce até ao momento em que se põe.

Recordo-me de ouvir pela primeira vez ‘Divine Love’. Quando a flauta do Dwight Andrews reintroduz o motivo melódico inicial, no fim da peça, senti que tinha assistido ao nascer do sol e que estava agora a ver o sol a pôr-se mas que pelo meio a minha vida se tinha transformado.
É uma bela descrição. Principalmente porque, de facto, a melodia que o Dwight toca nunca fica resolvida. Quando o trompete com surdina entra, quase aos 20 minutos, já está num tom diferente, alterando as relações anteriores. Parece que estamos a ouvir a mesma coisa mas o contexto transformou-se.

Foi uma impressão minha na altura, mas, com o passar dos anos, e quanto mais a ouvia, comecei a sentir que a sua música na realidade não tinha princípio nem fim. Que tudo se passava mais em simultâneo do que de modo assíncrono.
Está correto nessa dedução. Na minha música tudo se desenvolve simultaneamente numa direção e na outra, e depois na outra e ainda na outra. É a ideia do quarteto. Dos elementos, das verdades nobres, dos estágios da vida, das estações, das coordenadas, dos livros do Islão. Independentemente da sua fundação cultural, o número quatro surge no budismo, no hinduísmo, na simbologia judeo-cristã e islâmica, enfim, em qualquer sistema, de maneira continuamente multidirecional.

Estão, portanto, errados os que repetem que esta urgência na sua produção [cerca de 20 álbuns desde o ano 2000] prova que tem andado à procura do tempo perdido?
Completamente, pois cada passo foi necessário para chegar onde cheguei. Dou-lhe um exemplo: quando me mudei para o Connecticut, em 1970, fiquei praticamente sem tocar ao vivo. Não entrei em digressões e pouco gravei, isto durante quase duas décadas. Mas usei esse tempo para estudar, para pesquisar, para descobrir. E o que ganhei nesse período foi-me útil até hoje. Não me arrependo de nada. Segui um caminho que me proporcionou experiências de aprendizagem fundamentais. E que possibilitou que no meu íntimo despertasse a possibilidade de viver o maior dos amores.

Mas em algum momento teve dificuldades em comunicar os seus sentimentos e o seu pensamento?
Sempre. A viagem é isso mesmo. Mas poderia também dizer que foram as dificuldades de outrora que me permitem agora enxergar as coisas com mais nitidez. Aonde quer que vá ainda me sinto como um miúdo do Mississípi. Mas as dificuldades que enfrentei são as mesmas que outras pessoas encaram noutros pontos do globo. Aliás, só a ganância dos políticos justifica que se continue a dividir o mundo em nações. Nada disso é uma vantagem para a humanidade mas é usado em benefício próprio por aqueles que exercem o seu poder atuando contra os nossos interesses. Ainda creio que o mundo é meu. E que o meu lar, como dizia Bob Marley, está onde estiver o meu pensamento e o meu coração.

Há um ditado que diz que passamos pela vida à procura da estória no nosso coração.
E eu posso afirmar que encontrei o caminho. A vida é uma luta, e é assim que deve ser. E não há intenções claras na vida, e é também assim que deve ser. Estamos num ponto intermédio face à dimensão a que aspiramos. Uma que não tenha tanta dor, tanto sofrimento, tanto conflito. Seja como for, uma coisa é certa: o paraíso não é isto. Podia ser, mas também não iria durar.

Assim de repente, alguma vez compôs por receio ou por rancor?
Nunca. Não foi por terem arrancado à força os meus antepassados de África que me vou sentir motivado a odiar. Olho para os descendentes desses europeus e não os odeio porque, no fundo, em nada os receio. Tomei decisões de modo a poder viver uma vida desprovida de ódio, medo ou inveja. Sofro, mas compreendo melhor o meu sofrimento do que uma pessoa que se deixa dominar pela raiva ou pela necessidade de vingança. Para esses, mais não sobra do que uma vida de miséria.

E, no entanto, não se pode dizer que a sua não seja uma música de ação.
Claro. Aliás, toda a música deve conduzir à ação. Até porque a música é a arte que mais se assemelha à nossa vida. Já o dizia Kandinsky nos seus escritos acerca da espiritualidade. Já viu bem o papel que a música desempenha na vida das pessoas? Porque não obrigar os nossos governos a tomar nota disso?

Como? Não diria que a nossa relação com os nossos representantes já tem falhas suficientes?
Tem. Mas essas falhas são criadas por nós, porque pensamos enquanto indivíduos e nos achamos muito espertos por isso. Temos de repensar os nossos sistemas políticos, os nossos sistemas de saúde, económicos, etc., e adaptá-los para que representem mais o coletivo do que o indivíduo. Porque a nossa cultura é global e a comunidade internacional é uma só. Ignoramo-lo e permitimos estes constantes atentados à liberdade. E falo da liberdade real, não destas democracias cada vez mais insidiosas. Não há democracia no mundo. Engana-se quem pense o contrário. Nunca houve, nem sei se algum dia chegará a haver. O que temos é o exercício do poder por um bando de malfeitores. Isso e uma comunidade de escravos constituída por todos nós. Por isso, o progresso só é possível de modo radical. Temos de aceitar que o sistema está comprometido, e desligá-lo. Senão só nos resta um quotidiano de violência. Como o atual abuso das forças policiais norte-americanas, organizada, patrocinada e deliberadamente empregue para subjugar a comunidade afro-americana. É uma questão de direitos humanos.

Foram preocupações dessas que o levaram a gravar “Occupy the World”?
Claro. Temos de ser nós a impor um novo modelo de governação mundial baseado na etnicidade. Não vão ser os nossos governos corruptos a fazê-lo por nós. Temos de pensar num sistema coletivo que represente toda a diversidade do mundo. E as resoluções têm de ser baseadas em consensos. Agora, nada disto pode ser feito de forma gradual. Tem de ser de uma só vez, como quando nos apaixonamos. O impulso de transformar a sociedade tem de corresponder ao que sentimos quando amamos alguém instantaneamente, completamente, incondicionalmente. Wadada quer dizer amor, sabe?

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