30 de janeiro de 2016

Miles Davis “The Last Word: The Warner Bros. Years” (Warner, 2015)



No virar do século muito se falava de “The Last Word”, uma daquelas retrospetivas com pés e cabeça que raramente passam da fase de projeto. Pelo que era dado a entender, tratava-se da integral de Miles na Warner, mas a notícia nem era essa. Na antologia, a acompanhar gravações acerca das quais nada tinha ficado por saber encontrar-se-iam registos a respeito dos quais só se especulava. Viriam a lume as sessões com a Rubber Band, além de uma parceria com Prince que possuía como base temas compostos com o esmero concetual de um pedófilo (‘Can I Play With U’, ‘Jailbait’, etc) ou o célebre concerto de La Villette, o reencontro de julho de 1991 com McLaughlin, Corea, Hancock ou Shorter. Até data de lançamento se definiu: setembro de 2001, dez anos após a morte do seu dedicatário. Mas tão portentoso programa não chegou a ver a luz do dia, nem é agora que deixa de permanecer inédito. Sem tirar nem pôr, isto é, tal como originalmente vieram ao mundo, esta “The Last Word” reúne “Tutu”, “Amandla”, “Doo-Bop”, “Music from Siesta”, “Dingo”, “Live at Montreux”, “Live Around the World” e “Live at Nice Festival” (excertos de uma atuação de 1986 saídos a reboque da edição deluxe de “Tutu”, de 2011). Ou seja, comparada com a aparentada “1986-1991: The Warner Years” dá-se-lhe inclusivamente pela falta do volume “Rarities & Studio Guest Appearances”, por exemplo, que coligia colaborações de Miles com Toto, Shirley Horn, Chaka Khan ou Cameo. Fica, então, a memória do período mais problemático da sua carreira, em que a sua trompete faz de qualquer um destes álbuns um disco de jazz tanto quanto a salada mista transforma o McDonald’s num restaurante vegetariano.

Granados & Turina: Piano Quintets (Harmonia Mundi, 2015)


Após uma travessia do Atlântico prenhe em premonições, foi há 100 anos que Enrique Granados assistiu à estreia da versão operática de “Goyescas”, em Nova Iorque. Com Amparo, a sua mulher, a seu lado, viveu num corrupio, agitado por um vendaval de coquetéis e receções, incluindo uma ida à Casa Branca. “Vi por fim os meus sonhos realizados”, escreveu inocentemente numa carta endereçada a Ricardo Viñes. A 24 de março de 1916, na viagem de regresso a Barcelona, contar-se-iam os Granados entre as cerca de oitenta vítimas causadas pelo torpedeamento do paquete SS Sussex por um submarino de guerra alemão. Estamos, portanto, em ano de centenário. E é adequado que se assinale o seu início com uma obra como esta, menos irradiada pelo nacionalismo musical espanhol do que pelos modelos centro-europeus que tanto Granados como Joaquín Turina parecem ter vindo ao mundo disputar. De facto, neste “Quinteto para Piano”, de 1895, pressente-se mais a fragrância dos salões parisienses e dos vapores do Elba, por exemplo, do que qualquer tipo de impressão que se associe a uma índole hispânica – “Ambiciono tornar-me no meu país o que Saint-Saëns ou Brahms são nos deles”, referiu, e dá aqui voz às suas dores de crescimento. Mas a peça é um pequeno prodígio de inventivas combinações harmónicas e inspiradas colorações, na qual, por instantes, se adivinha já o casulo da nostalgia pelo sul. De 1907, também o “Quinteto” de Turina só por uma vez permite que um levantar de sobrolho ibérico perturbe um semblante galófilo e germanófilo, expressão de doutrinas face às quais logo passaria de apóstolo a apóstata.

Kandia Kouyaté “Renascence” (Sterns, 2015)


É de renascimento que se fala. Mas a verdade é que, por entre apelos à fraternidade, este disco não podia gozar de um preâmbulo mais canónico, com Kandia Kouyaté a dirigir louvores aos seus antepassados. Dir-se-ia um impulso sincero. Afinal, e enquanto fiadora da coesão nacional, outra coisa não seria de esperar de uma jelimuso – para mais perante as sucessivas ameaças à integridade territorial do seu país. Por outro lado, ainda que resista a cruzar o umbral do século XIII – através da evocação da “Epopeia de Sundiata”, tese inceptiva quer do Império do Mali, quer da sua genealogia artística – não deixa de gerar um efeito conservador, mal disfarçando os tiques de soberania cultural da sua casta. 

É uma entre as muitas contradições de “Renascence”, ou melhor, entre as suas muitas dores, pois nada do que aqui está se estaciona propriamente à margem do fluxo interminável da vida e da morte. Nessa perspetiva, ao trazer à memória um longo período de convalescença, possui particular pungência em ‘Sadjougoulé’ (doença). É que, tendo sofrido um AVC em 2004, não se imaginava que Kandia pudesse voltar a cantar ou, pelo menos, que o viesse a fazer de forma tão retaliativa e avassaladora. Deve-o a Ibrahima Sylla, o seu produtor, conforme esclarece em depoimentos reproduzidos nos materiais de promoção da Sterns: “O disco só existe por causa dele. Em estúdio, tinha sempre uma palavra de alento. Pedia-me que cantasse o que me passasse pela cabeça e eu respondia-lhe que não conseguia, que me tinha esquecido de tudo. Mas ele insistia: não te preocupes, amanhã hás de te lembrar.” No fundo, é possível que fosse Sylla a suspeitar que não conduziria as operações até final: de facto, faleceu em 2013, após doença prolongada. É, então, perfeitamente apropriado que, de modo a garantir a sua conclusão, tenha convocado François Bréant, o orquestrador e multi-instrumentista a que no passado recorreu quando quis levar uma voz – do Salif Keita de “Soro” e do Sékouba Bambino de “Sinikan” à Bako Dagnon de “Titati” – a transcender a dimensão do folclore. Nos anos 90, porque se relatavam muitos desmaios nos concertos de Kandia Kouyaté, chamavam-lhe “A Perigosa”. Nunca o foi tanto quanto agora.

22 de janeiro de 2016

Enrico Pieranunzi “Proximity” (Cam Jazz, 2015)



Há inventários fonográficos que se revelam perfeitamente paradigmáticos. No caso de Pieranunzi pode até concluir-se que só o estabelecimento da Cam Jazz, na qual entretanto gravou vinte discos, possibilitou uma leitura estruturada da sua produção, facilitou o reconhecimento de traços comuns na sua escrita, proporcionou a identificação dos modelos a partir dos quais as suas improvisações derivam (quase sempre uma ação secundária cuja apreciação da principal em tudo depende) e conferiu um parâmetro narrativo ao seu entendimento das relações humanas (pense-se na longevidade do trio que constituiu com Marc Johnson e Joey Baron). Parece estar a discutir-se literatura mais do que música. Também as notas de apresentação de “Proximity”, redigidas por Brian Morton, seguem nessa bitola, com o crítico a registar “o grande contributo de Pieranunzi ao longo dos anos”: resumindo, a consciência de que só quem vive efetivamente a história se consegue em absoluto libertar dos condicionamentos que ela impõe. O que deverá explicar a contínua revisão que o pianista promove das suas próprias peças: aqui, ‘Simul’ provém de “Current Conditions” (2003), ‘Sundays’ de “Ballads” (2006), ‘Five Plus Five’ e ‘No-Nonsense’ de “Dream Dance” (2009) e ‘Within the House of Night’ de “Permutation” (2012), e a impressão que fica é a do autor de uma peça de teatro que se apercebe, com o passar do tempo, que os seus textos se vão apegando às personalidades dos que a palco uma e outra vez os conduzem e que só ficam melhores por isso. Trata-se de uma dramatização que circula em duas vias, pois também Ralph Alessi, Donny McCaslin e Matt Penman – note-se a ausência de baterista – se entregam a estes temas de um lirismo praticamente mediterrânico confessando o que de outro modo talvez nunca viessem a dizer. É mais uma forma de falar de proximidade.

Pierre Boulez Conducts: Ravel (Sony, 2015)



Com proveniência nos arquivos da CBS e da RCA, prossegue a série “Masters”, da Sony, com um punhado de títulos particularmente inspirado, entre os quais se destacam ciclos sinfónicos integrais de Schubert ou Beethoven, respetivamente sob as eméritas batutas de Sir Colin Davis e Bruno Walter, ou este, que aqui nos traz, consagrado à obra orquestral completa de Ravel, em que, por sinal, nada obedecia a batuta alguma – Boulez conduzia a orquestra com as duas mãos, cada gesto seu calculado para trazer à memória aquelas passagens da bíblia em que se invocam a diligência e a destreza com que o oleiro molda a peça de barro (pense-se em versículos de Isaías ou, mais apropriadamente, noutros de Jeremias, visto não terem sido poucos os que o aclamaram como profeta). Pierre Boulez faleceu no passado dia 5, aos 90 anos. Não será de somenos importância lembrar agora que, sob o pretexto de sublinhar o seu prestígio enquanto compositor e maestro, não há chancela que não tenha já cumprido com as suas obrigações: a DG com “20th Century” (44 CD) e “Le Domaine Musical” (10 CD), a Warner com “The Complete Erato Recordings” (14 CD), a Sony com “The Complete Columbia Album Collection” (67 CD), edições essenciais, exaustivas, extenuantes. Mas esta antologia com registos dos anos 60 e 70 possui proporções incontestáveis, ainda que retrate um Boulez farto em contradições: empático nos seus propósitos mas apto a agir em interesse próprio; inabalável nos seus princípios e, quiçá por isso, com tendência para a intriga; tão à vontade com a autoridade excessiva como com a liberalidade sem restrições; um elitista à imagem do século que o viu nascer. Comparadas com subsequentes releituras do mesmo repertório com a Filarmónica de Berlim ou a Sinfónica de Londres, são propriedades que estas interpretações trazem a lume. Aqui – mais que clínico, dir-se-ia, de modo cínico – a ênfase é conferida ao timbre, à cor, à pulsação, ao ritmo, mais à forma que ao conteúdo, isto é, ao que Boulez não considerava tão menosprezível, sendo que cada estrutura se mantém no geral plácida e no pormenor impaciente, na aparência fácil de prever e no âmago plena de imponderáveis. E nunca o melhor de Ravel soou tão bem.