No virar
do século muito se falava de “The Last Word”, uma daquelas retrospetivas com
pés e cabeça que raramente passam da fase de projeto. Pelo que era dado a
entender, tratava-se da integral de Miles na Warner, mas a notícia nem era essa.
Na antologia, a acompanhar gravações acerca das quais nada tinha ficado por
saber encontrar-se-iam registos a respeito dos quais só se especulava. Viriam a
lume as sessões com a Rubber Band, além de uma parceria com Prince que possuía como
base temas compostos com o esmero concetual de um pedófilo (‘Can I Play With U’,
‘Jailbait’, etc) ou o célebre concerto de La Villette, o reencontro de julho de
1991 com McLaughlin, Corea, Hancock ou Shorter. Até data de lançamento se
definiu: setembro de 2001, dez anos após a morte do seu dedicatário. Mas tão
portentoso programa não chegou a ver a luz do dia, nem é agora que deixa de permanecer
inédito. Sem tirar nem pôr, isto é, tal como originalmente vieram ao mundo, esta
“The Last Word” reúne “Tutu”, “Amandla”, “Doo-Bop”, “Music from Siesta”,
“Dingo”, “Live at Montreux”, “Live Around the World” e “Live at Nice Festival”
(excertos de uma atuação de 1986 saídos a reboque da edição deluxe de “Tutu”, de 2011). Ou seja,
comparada com a aparentada “1986-1991: The Warner Years” dá-se-lhe
inclusivamente pela falta do volume “Rarities & Studio Guest Appearances”,
por exemplo, que coligia colaborações de Miles com Toto, Shirley Horn, Chaka
Khan ou Cameo. Fica, então, a memória do período mais problemático da sua carreira,
em que a sua trompete faz de qualquer um destes álbuns um disco de jazz tanto
quanto a salada mista transforma o McDonald’s num restaurante vegetariano.
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
30 de janeiro de 2016
Granados & Turina: Piano Quintets (Harmonia Mundi, 2015)
Após uma travessia do Atlântico prenhe em
premonições, foi há 100 anos que Enrique Granados assistiu à estreia da versão
operática de “Goyescas”, em Nova Iorque. Com Amparo, a sua mulher, a seu lado,
viveu num corrupio, agitado por um vendaval de coquetéis e receções, incluindo
uma ida à Casa Branca. “Vi por fim os meus sonhos realizados”, escreveu inocentemente
numa carta endereçada a Ricardo Viñes. A 24 de março de 1916, na viagem de
regresso a Barcelona, contar-se-iam os Granados entre as cerca de oitenta
vítimas causadas pelo torpedeamento do paquete SS Sussex por um submarino de
guerra alemão. Estamos, portanto, em ano de centenário. E é adequado que se assinale
o seu início com uma obra como esta, menos irradiada pelo nacionalismo musical
espanhol do que pelos modelos centro-europeus que tanto Granados como Joaquín Turina
parecem ter vindo ao mundo disputar. De facto, neste “Quinteto para Piano”, de
1895, pressente-se mais a fragrância dos salões parisienses e dos vapores do
Elba, por exemplo, do que qualquer tipo de impressão que se associe a uma índole
hispânica – “Ambiciono tornar-me no meu país o que Saint-Saëns ou Brahms são
nos deles”, referiu, e dá aqui voz às suas dores de crescimento. Mas a peça é
um pequeno prodígio de inventivas combinações harmónicas e inspiradas
colorações, na qual, por instantes, se adivinha já o casulo da nostalgia pelo
sul. De 1907, também o “Quinteto” de Turina só por uma vez permite que um
levantar de sobrolho ibérico perturbe um semblante galófilo e germanófilo,
expressão de doutrinas face às quais logo passaria de apóstolo a apóstata.
Kandia Kouyaté “Renascence” (Sterns, 2015)
É de
renascimento que se fala. Mas a verdade é que, por entre apelos à fraternidade,
este disco não podia gozar de um preâmbulo mais canónico, com Kandia Kouyaté a
dirigir louvores aos seus antepassados. Dir-se-ia um impulso sincero. Afinal, e
enquanto fiadora da coesão nacional, outra coisa não seria de esperar de uma jelimuso – para mais perante as
sucessivas ameaças à integridade territorial do seu país. Por outro lado, ainda
que resista a cruzar o umbral do século XIII – através da evocação da “Epopeia
de Sundiata”, tese inceptiva quer do Império do Mali, quer da sua genealogia
artística – não deixa de gerar um efeito conservador, mal disfarçando os tiques
de soberania cultural da sua casta.
É uma entre as muitas contradições de “Renascence”, ou melhor, entre as suas muitas dores, pois nada do que aqui está se estaciona propriamente à margem do fluxo interminável da vida e da morte. Nessa perspetiva, ao trazer à memória um longo período de convalescença, possui particular pungência em ‘Sadjougoulé’ (doença). É que, tendo sofrido um AVC em 2004, não se imaginava que Kandia pudesse voltar a cantar ou, pelo menos, que o viesse a fazer de forma tão retaliativa e avassaladora. Deve-o a Ibrahima Sylla, o seu produtor, conforme esclarece em depoimentos reproduzidos nos materiais de promoção da Sterns: “O disco só existe por causa dele. Em estúdio, tinha sempre uma palavra de alento. Pedia-me que cantasse o que me passasse pela cabeça e eu respondia-lhe que não conseguia, que me tinha esquecido de tudo. Mas ele insistia: não te preocupes, amanhã hás de te lembrar.” No fundo, é possível que fosse Sylla a suspeitar que não conduziria as operações até final: de facto, faleceu em 2013, após doença prolongada. É, então, perfeitamente apropriado que, de modo a garantir a sua conclusão, tenha convocado François Bréant, o orquestrador e multi-instrumentista a que no passado recorreu quando quis levar uma voz – do Salif Keita de “Soro” e do Sékouba Bambino de “Sinikan” à Bako Dagnon de “Titati” – a transcender a dimensão do folclore. Nos anos 90, porque se relatavam muitos desmaios nos concertos de Kandia Kouyaté, chamavam-lhe “A Perigosa”. Nunca o foi tanto quanto agora.
É uma entre as muitas contradições de “Renascence”, ou melhor, entre as suas muitas dores, pois nada do que aqui está se estaciona propriamente à margem do fluxo interminável da vida e da morte. Nessa perspetiva, ao trazer à memória um longo período de convalescença, possui particular pungência em ‘Sadjougoulé’ (doença). É que, tendo sofrido um AVC em 2004, não se imaginava que Kandia pudesse voltar a cantar ou, pelo menos, que o viesse a fazer de forma tão retaliativa e avassaladora. Deve-o a Ibrahima Sylla, o seu produtor, conforme esclarece em depoimentos reproduzidos nos materiais de promoção da Sterns: “O disco só existe por causa dele. Em estúdio, tinha sempre uma palavra de alento. Pedia-me que cantasse o que me passasse pela cabeça e eu respondia-lhe que não conseguia, que me tinha esquecido de tudo. Mas ele insistia: não te preocupes, amanhã hás de te lembrar.” No fundo, é possível que fosse Sylla a suspeitar que não conduziria as operações até final: de facto, faleceu em 2013, após doença prolongada. É, então, perfeitamente apropriado que, de modo a garantir a sua conclusão, tenha convocado François Bréant, o orquestrador e multi-instrumentista a que no passado recorreu quando quis levar uma voz – do Salif Keita de “Soro” e do Sékouba Bambino de “Sinikan” à Bako Dagnon de “Titati” – a transcender a dimensão do folclore. Nos anos 90, porque se relatavam muitos desmaios nos concertos de Kandia Kouyaté, chamavam-lhe “A Perigosa”. Nunca o foi tanto quanto agora.
22 de janeiro de 2016
Enrico Pieranunzi “Proximity” (Cam Jazz, 2015)
Há
inventários fonográficos que se revelam perfeitamente paradigmáticos. No caso
de Pieranunzi pode até concluir-se que só o estabelecimento da Cam Jazz, na
qual entretanto gravou vinte discos, possibilitou uma leitura estruturada da
sua produção, facilitou o reconhecimento de traços comuns na sua escrita, proporcionou
a identificação dos modelos a partir dos quais as suas improvisações derivam (quase
sempre uma ação secundária cuja apreciação da principal em tudo depende) e conferiu
um parâmetro narrativo ao seu entendimento das relações humanas (pense-se na
longevidade do trio que constituiu com Marc Johnson e Joey Baron). Parece estar
a discutir-se literatura mais do que música. Também as notas de apresentação de
“Proximity”, redigidas por Brian Morton, seguem nessa bitola, com o crítico a registar
“o grande contributo de Pieranunzi ao longo dos anos”: resumindo, a consciência
de que só quem vive efetivamente a história se consegue em absoluto libertar dos
condicionamentos que ela impõe. O que deverá explicar a contínua revisão que o
pianista promove das suas próprias peças: aqui, ‘Simul’ provém de “Current
Conditions” (2003), ‘Sundays’ de “Ballads” (2006), ‘Five Plus Five’ e
‘No-Nonsense’ de “Dream Dance” (2009) e ‘Within the House of Night’ de
“Permutation” (2012), e a impressão que fica é a do autor de uma peça de teatro
que se apercebe, com o passar do tempo, que os seus textos se vão apegando às
personalidades dos que a palco uma e outra vez os conduzem e que só ficam
melhores por isso. Trata-se de uma dramatização que circula em duas vias, pois
também Ralph Alessi, Donny McCaslin e Matt Penman – note-se a ausência de baterista – se entregam a estes temas de um lirismo praticamente mediterrânico confessando
o que de outro modo talvez nunca viessem a dizer. É mais uma forma de falar de proximidade.
Pierre Boulez Conducts: Ravel (Sony, 2015)
Com
proveniência nos arquivos da CBS e da RCA, prossegue a série “Masters”, da Sony,
com um punhado de títulos particularmente inspirado, entre os quais se destacam
ciclos sinfónicos integrais de Schubert ou Beethoven, respetivamente sob as
eméritas batutas de Sir Colin Davis e Bruno Walter, ou este, que aqui nos traz,
consagrado à obra orquestral completa de Ravel, em que, por sinal, nada
obedecia a batuta alguma – Boulez conduzia a orquestra com as duas mãos, cada gesto
seu calculado para trazer à memória aquelas passagens da bíblia em que se
invocam a diligência e a destreza com que o oleiro molda a peça de barro (pense-se
em versículos de Isaías ou, mais apropriadamente, noutros de Jeremias, visto não
terem sido poucos os que o aclamaram como profeta). Pierre Boulez faleceu no
passado dia 5, aos 90 anos. Não será de somenos importância lembrar agora que,
sob o pretexto de sublinhar o seu prestígio enquanto compositor e maestro, não há
chancela que não tenha já cumprido com as suas obrigações: a DG com “20th
Century” (44 CD) e “Le Domaine Musical” (10 CD), a Warner com “The Complete
Erato Recordings” (14 CD), a Sony com “The Complete Columbia Album Collection”
(67 CD), edições essenciais, exaustivas, extenuantes. Mas esta antologia com registos
dos anos 60 e 70 possui proporções incontestáveis, ainda que retrate um Boulez farto
em contradições: empático nos seus propósitos mas apto a agir em interesse
próprio; inabalável nos seus princípios e, quiçá por isso, com tendência para a
intriga; tão à vontade com a autoridade excessiva como com a liberalidade sem
restrições; um elitista à imagem do século que o viu nascer. Comparadas com
subsequentes releituras do mesmo repertório com a Filarmónica de Berlim ou a
Sinfónica de Londres, são propriedades que estas interpretações trazem a lume. Aqui
– mais que clínico, dir-se-ia, de modo cínico – a ênfase é conferida ao timbre,
à cor, à pulsação, ao ritmo, mais à forma que ao conteúdo, isto é, ao que
Boulez não considerava tão menosprezível, sendo que cada estrutura se mantém no
geral plácida e no pormenor impaciente, na aparência fácil de prever e no âmago
plena de imponderáveis. E nunca o melhor de Ravel soou tão bem.
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