9 de janeiro de 2016

"Les Eléments: Tempêtes, Orages & Fêtes Marines 1674-1764" (Alia Vox, 2015)



Num tratado de 1606, o teórico alemão Joachim Burmeister define hipotipose nestes termos: “Ornamento através do qual se elucida de tal maneira o significado de um texto que as suas palavras, em si mesmo desguarnecidas de alma, se enchem subitamente de vida.” Isto é, no contexto da criação musical, trata-se de uma técnica apta a conferir ao poema uma “presença sensorial”, como sugeriu Heinrich F. Plett. É uma citação oportuna, pois neste “Les Éléments” constam obras em que o efeito assumiu proporções concetuais: peças para uma adaptação de “A Tempestade”, de Matthew Locke (organista de Catarina de Bragança), a “Música Aquática”, de Telemann, o “La Tempesta di mare”, de Vivaldi, árias de marinheiros e tritões de “Alcione”, de Marin Marais, caracterizações de trovoadas e tremores de terra com origem em “As Índias Galantes”, “Hipólito e Arícia” e “Zaratustra”, de Jean-Philippe Rameau (também de Rameau, e segundo notas de apresentação, do alinhamento do disco deveria ainda constar uma ária extraída a "As Boréades", facto que a sua audição não confirma) e, claro, “Les Éléments”, de Jean-Féry Rebel. O resultado é convincente, com Savall a manobrar pela amotinada mitologia do mundo marinho e a acentuar o alvoroço inerente a cada composição original, acionando a imaginação do ouvinte pela invocação das assombrosas forças que obram no universo. No nosso planeta, sabe-o bem o maestro catalão, nenhuma é mais temível do que a do Homem*. Daí a sua advertência final: “A Terra está em perigo.” O que leva a repensar a retórica deste programa – é que se suspeita que chegará o dia em que não virá mais a bonança depois da tempestade.

* É o que inevitavelmente se conclui através da leitura de um texto no qual Savall chega a mencionar as alterações climáticas. Mas dir-se-ia que, aqui, tamanha responsabilização logo ganha paradigma em termos gráficos, com a reprodução, na capa, de "O Navio Negreiro", um quadro de Turner. Basta, aliás, pensar no título original da obra, que se poderá assim traduzir: "Negreiros Atiram Mortos e Moribundos Borda Fora - Aproxima-se um Tufão".

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