28 de maio de 2016

Henry Threadgill/Ensemble Double Up “Old Locks and Irregular Verbs” (Pi Recordings, 2016)



Tempera o seu humor com muito vinagre, Henry Threadgill. E não seria de espantar que à sucessão de distinções e subvenções de que se vê súbito beneficiário (do Pulitzer para música ao Prémio Artista da Fundação Doris Duke) reagisse pela invocação de um dos seus álbuns mais emblemáticos, dizendo que isto é tudo “Too Much Sugar For a Dime”, um dos aforismos preferidos com que o seu pai, inveterado jogador dado ao apotegmatismo e à manutenção da compostura, acolhia repentinas marés de sorte. Mas não. Na realidade, no momento em que se torna milionário, e basta seguir-lhe as declarações no último mês, o saxofonista e compositor parece ter consciência de que chegou a hora de baixar a guarda. Aliás, coincide com este período de acoladas sem precedentes o lançamento da primeira gravação de um novo conjunto por si dirigido.

Em “Old Locks and Irregular Verbs” tocam os pianistas Jason Moran e David Virelles (em simultâneo), os saxofonistas Roman Filiu e Curtis Macdonald (os dois no saxofone alto), o violoncelista Christopher Hoffman, o tubista José Davila e o baterista Craig Weinrib, e o que aí se escuta é uma música que não se deixa ferir pela sua própria força nem travar pelas suas próprias torções, com códigos, rituais, gentilezas, indelicadezas, esperanças e abandonos que só lhe pertencem. É dedicada a Lawrence D. “Butch” Morris, compagnon de route de Threadgill falecido em janeiro de 2013, vítima de cancro (estiveram lado a lado no octeto de David Murray na alvorada dos anos 80 e, quiçá cansados de sufocar velhos anseios, mais tarde, participaram ambos em “Vietnam: Reflections”, de Billy Bang). E talvez por isso não tenha Threadgill levado para a sessão de estúdio nenhum outro instrumento que aquele que partitura, púlpito e postura tornam completo, e que Morris, que o patenteou sublinhando-lhe a adesão à física, nas notas de apresentação que escreveu para a caixa “Testament: A Conduction Collection” assim definiu: “a Condução não se refere apenas ao ato de improvisação conduzida, mas é também a carga elétrica e a resposta corpo a corpo: a transmissão imediata de informação e o resultado.” Trata-se do típico registo em que os crentes logo vislumbram uma ocorrência tangível do sagrado mas que, pelo contrário, se notabiliza, precisamente, ao projetar vulnerabilidades muito terrenas. Ou seja, não obstante Threadgill possuir mais que uma vizinhança casual com a transcendência, esta sua obra-prima tem domicílio nas vidas partilhadas de um par de amigos cuja experiência na guerra teve consequências mais profundas que a simples repulsa da morte, cuja arte serviu invariavelmente para evocar aqueles que souberam resistir às humilhações perpetradas por poderes que a moral condena (e o hábito tolera) e cuja mensagem foi a da independência total face aos hieráticos bustos da tradição e da vanguarda. É o palmo inicial de um mundo novo que só agora se começa a tatear.

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