Neste
contexto, o anátema permanece o mesmo: falar de nostalgia. E já em finais dos
anos 90, por sinal, outra preocupação não guiava Suzanne E. Smith quando, de
modo invulgarmente incontrito, se preparava para dar ao prelo “Dancing in the
Street: Motown and the Cultural Politics of Detroit”. Aliás, retirado à
introdução e conclusão do livro, eis um par de frases que o fundamentam de forma
exemplar: “Justapor a música editada pela Motown a tudo o que definiu a
história política, racial, económica e cultural de Detroit permite que se rompa
de imediato com aquele tipo de nostalgia que não é mais que um obstáculo à
análise crítica da editora e do seu som. Pois a verdade é que a Motown não surge
numa cidade conhecida pela paz social e pela ordem cívica.” Ou seja, além de
indicar que a nostalgia é em absoluto um filtro que desfoca o passado, Smith parecia
insistir num ponto relativo, mais controverso: o de que a fama duradoura da música
da Motown tem servido para ocultar as lutas da sua era.
De
facto, e não obstante o lançamento, em 1963, de “The Great March to Freedom”,
um discurso de Martin Luther King, a editora fundada por Berry Gordy resistiu
mais do que o aconselhável ao acompanhamento das grandes transformações comportamentais
da década de 60. E, a propósito, há quem não perca a oportunidade para lembrar que
o primeiro êxito de Gordy foi ‘Money (That’s What I Want)’. Era ao que se
referia Marvin Gaye quando recordou este episódio a David Ritz, seu biógrafo: “Estava
a ouvir uma das minhas canções na rádio quando o locutor interrompeu o programa
com a notícia da eclosão dos tumultos de Watts. Foi um murro no estômago.
Fiquei com a cabeça a latejar. Quis mandar tudo ao ar, queimar estas cançonetas
de merda e sair à rua. Sabia que não era a forma ideal de reagir, mas entendia bem
essa raiva que se vai acumulando ao longo de anos – porra, de séculos – e sentia-me
a explodir. Não era suposto a música expressar sentimentos? Não. Segundo o BG a
música era feita para vender.”
E
a Motown (e subsidiárias suas, como a Tamla, a Gordy, a Soul ou a V.I.P.) tinha
vendido mais e melhor do que ninguém: os Miracles, os Contours, Mary Wells, as
Marvelettes, os Four Tops, Martha and the Vandellas, Kim Weston, o pequeno
Stevie Wonder, o próprio Gaye e, fundamentalmente, as Supremes e os
Temptations. Todos eles com instintos rigorosamente vigiados e em obediência a um
princípio assim sintetizado pelo seu patrão: “Numa fábrica de automóveis, a
início, um carro é só a carroçaria. Até que, depois, avançando por aquelas
esteiras, chega ao fim da linha de montagem pronto a ser comercializado. Era
esse o conceito que eu queria para a minha empresa, só que com canções e
discos. Queria ter um sítio em que um miúdo pudesse entrar por uma porta como
um perfeito desconhecido e sair por outra como uma estrela” (Berry Gordy in “To Be Loved: the Music, the Magic,
the Memories of Motown”). Pelo menos até ao momento em que os miúdos crescessem
e percebessem que estavam a ser explorados.
Isto,
porque, através de práticas contabilísticas criativas – o que levou, por
exemplo, a um processo judicial movido contra si em nome de três distintos compositores
ao seu serviço (Eddie Holland, Lamont Dozier e Brian Holland) – a Motown provou
à própria comunidade que se diria representar que o capitalismo não corrige a iniquidade
económica e social. Quando o Movimento dos Direitos Civis se radicalizou, a
editora, enquanto símbolo de progresso racial por via da integração, virou um
alvo. Imagine-se o susto de Gordy quando lhe chegou aos ouvidos a alocução de
H. Rap Brown na “Black Arts Convention” de 1967: “Que fique a América branca a
saber que vamos responder na mesma moeda, olho por olho, dente por dente.
Motown, se não mudas a maneira de ser, vamos deixar-te a arder!” Rap fazia
alusão à motor town, dirigindo-se às
elites de Detroit, capital da indústria automóvel, mas a terminologia não era
inocente. Menos de um mês depois desencadeavam-se os piores motins da história
da cidade.
No
último trimestre de 1967, em antípodas jornalísticos, aparecem dois artigos profundamente
contraditórios sobre a Motown. O primeiro, numa publicação de grande tiragem e
alcance nacional, a revista “Fortune”, dirigia louvores ao que considerava um
modelo de gestão privada afro-americana. O segundo, num pasquim algo subterrâneo
e circunscrito aos guetos de Detroit, o “Inner City Voice”, concluía que “se
grande parte daqueles 15 milhões de lucros por ano não chegar às mãos dos seus
lacaios escurinhos, a Motown não interessa a ninguém” e que, nessa perspetiva,
“se torna absurdo considerá-la um motivo de orgulho”. Era uma divisão interna
na própria Motown, com Gordy a comprar uma mansão em Los Angeles e a abrir
escritórios em Tóquio, Paris e Londres ao mesmo tempo que os membros dos
Temptations, um dos bastiões artísticos da casa, como conta Mark Ribowsky, em
“Ain't Too Proud to Beg”, consideravam entrar em greve em virtude da má
distribuição de rendimentos e direitos conexos da editora.
O saldo
da Motown estava no negativo. Afinal, tratava-se da década das independências
africanas e de impulsos revolucionários à escala global, da eleição e posterior
assassinato de Kennedy, dos massacres no Alabama e do diploma legal que pôs fim
à segregação, dos motins, da guerra do Vietname, daquele sonho que Luther King evocou
em Washington e do Nobel da paz que recebeu, bem como a do seu subsequente
aniquilamento, a que se seguiu o de Malcolm X, etc., e, vasculhando no seu arquivo,
em termos de ‘música de intervenção’, a que se resumia a o contributo de Gordy?
A uma versão de ‘Blowin’ in the Wind’, de Bob Dylan, cantada por Stevie Wonder,
em 1966. Claro que Gordy seria o primeiro a argumentar que, entre outras,
independentemente de credo ou cor, ter posto um país inteiro a cantar ‘Bye Bye
Baby’, ‘Please Mr. Postman’, ‘Heat Wave’, ‘My Guy’, ‘My Girl’, ‘Dancing in the
Street’, ‘Baby Love’, ‘Stop! In the Name of
Love’ ou ‘Reach Out I’ll Be There’ havia sido já contribuição suficiente.
Mas era demasiada pressão. Por isso, em 1970, Gordy funda
um novo selo consagrado à palavra dita e lança “It’s Nation Time”, de Amiri
Baraka, ou “Free Huey”, de Stokely Carmichael. Em complemento, concede
liberdade criativa a Marvin Gaye e Stevie Wonder, que correspondem com obras-primas
(de “What’s Going On” e “Let’s Get it On” a “Music of My Mind” e
“Innervisions”). É nesta conjuntura que se compreende a ousadia formal e a
relevância política de álbuns como “Face to Face with the Truth” (1971),
“People… Hold On” (1972) ou “Smokey” (1973), há muito esgotados e agora inseridos
numa nova coleção. No
primeiro, os Undisputed Truth (veículo para Norman Whitfield, que os situava
“entre Sly Stone e 5th Dimension”) diziam ao que vinham com ‘You Make Your Own
Heaven and Hell Right Here on Earth’. Depois,
sucediam-se menções à exclusão social, à Guerra Fria, à discriminação, à
pobreza. Também Eddie Kendricks, saído dos Temptations, se interrogava se “um
mundo melhor é possível”, à medida que acrescentava outras problemáticas à
equação, como a do feminismo. Ainda assim, estavam longe das subtilezas
poéticas de Smokey Robinson. Em ‘Holly’, o mesmo refrão (“Holly on a cloud in
the sky/Way above the crowd, flyin high”) possui três significados
contrastantes: o mundo de fantasia de uma adolescente, dependência da droga,
morte e ascensão ao céu. Mas chegava tarde, tanto didatismo e missionarismo.
Gordy transferia a Motown para Los Angeles e concentrava-se em Diana Ross, nos
Jackson 5 e na reedição de singles da
década anterior. Sucesso, no período, tinham grupos como os Ohio Players,
aqueles sofistas de conversa de almofada a que se perdoava a cada disco o
encargo do chauvinismo. À custa do sentido lúdico, como é óbvio, mas também da
tomada de consciência que, depois do adeus aos anos 60, a esperança deu lugar à
desilusão, a alegria à amargura, o idealismo ao cinismo, o amor à pornografia.