Termina
na Lei Áurea e tem início quando Lançarote de Freitas e Gil Eanes, que daí haviam
partido em “serviço a Deus e ao Infante”, a Lagos tornam com uma carga de mouros.
Logo depois, em “Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné”, Gomes Eanes de
Zurara expunha os factos de uma captura em que os navegadores “matavam e prendiam
quanto podiam”, com “mães largando filhos” e “maridos e mulheres tratando de
fugir” enquanto uns “se afogavam sob as águas e outros se escondiam debaixo dos
limos” (e deve-se ser sensível à pertinência desta última frase no quadro atual
de emigração clandestina do Norte de África para a Europa). Isto é, trata-se de
um programa que tem como objeto o Tráfico Negreiro não obstante a alusão que na
sua capa se faz ao tráfico árabe de escravos. Como costuma ser o caso com
Savall, conjuga-se igualmente uma reação à complexidade das coisas. Na
apresentação do projeto, o maestro repete uma ideia a que tem amiúde voltado: a
de que representa “a história viva de um passado longo e doloroso”. Diz:
“Escutemos estes cantos, memória de sofrimento absoluto na qual a música se
converteu num autêntico modo de sobreviver sem deixar de se tornar num eterno
refúgio de paz, consolo e esperança.” É por isso particularmente feliz a evocação
de Zurara, que reconheceu os cativos como seus semelhantes (“piedosamente
chorando o seu padecimento”) e descreveu o seu desembarque nestes termos: “Uns
tinham o rosto lavado em lágrimas; outros bradavam aos céus, suplicantes;
outros feriam a face com as palmas das mãos; outros lamentavam-se cantando.” No
fundo, é por aqui que esta história começa. A declamação é feita em francês (o
registo foi captado em julho de 2015, na abadia de Fontfroide, em Narbonne),
pelo ator Bakary Sangaré, mas no concerto de quinta-feira, em Lisboa, o
narrador será o moçambicano Alberto Magassela, pelo que as consciências locais
sairão duplamente ungidas. Deslumbrante, a música vem do Brasil, da Colômbia,
do Mali ou do México e combina repertório tradicional, popular, litúrgico. A cada
compasso é um grilhão que se quebra… E o medo que se espanta.
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