Na sua
última grande entrevista, em 1941, Sergei Rachmaninoff confessava que ao
abandonar a Rússia tinha imediatamente renunciado a si: “Perdendo o meu país,
perdi-me a mim mesmo”. Stravinsky costumava dizer algo do género. Aliás, como a
generalidade dos órfãos da Revolução de Outubro, imagina-se que nem na poesia
encontrasse consolo: “As saudades da pátria, que ilusão”, “Que me importam os
rostos entre os quais/ possa viver como um leão rugindo?”, “O voraz leitor de
jornais/ e mungidor de intrigas/ é do século vinte/ e eu de todos os séculos!”,
“Perplexa como um tronco/ sou o que resta de uma alameda”, escreveu Tsvetáieva
no exílio. Claro que Rachmaninoff não precisou de emigrar para conhecer a
alienação e a carência: pelo contrário, cedeu-lhes o palco desde a primeira
hora. E no “Concerto para Piano Nº 3”, em Ré menor, Op. 30, é toda uma
assombração litúrgica que põe em cena, com aquelas ruminações ortodoxas
entremeadas pelo telintar das vozes dos anjos: entregue a Sokolov, o início da
longa cadenza é uma lenta procissão
de um eremita à luz da vela, com o livro sagrado na mão esquerda e um sino na
direita. E como Horowitz, Gilels ou Berman antes de si, eleva a melancolia do Adagio a um ato de comunhão e conduz ao
êxtase a energia triunfalista do Finale.
Trata-se de uma gravação arrebatadora, de 1995, nos Proms, com a Filarmónica da
BBC e Yan Pascal Tortelier como que tomados de um fascínio irresistível por
tudo aquilo que se passava ao piano.
O mesmo se pode dizer da Orquestra de
Câmara Mahler e de Trevor Pinnock no “Concerto para Piano Nº 23”, em Lá maior,
K 488, de Mozart, num registo de 2005, também ele ao vivo. Aqui, é igualmente
pelo Adagio (mais que raro, um objeto
absolutamente insólito nos concertos para piano do compositor) que as coisas se
definem e ao mesmo tempo transcendem: Sokolov toca-o de fora para dentro,
reforçando-lhe a inclinação para a quietude, nem que seja para, depois, lhe
reanimar a dimensão operática, casando a graça e a tragédia que tantas vezes se
cruzam em Mozart. Como diz o maestro Valentin Nesterov em “A Conversation That
Never Was”, documentário criado a partir de depoimentos de amigos e colegas do
pianista, de material proveniente de arquivos estatais e de coleções
particulares e dos poemas de Inna Sokolova (sua mulher): “O ‘Grisha’ dirige a
música até às profundezas do seu coração para a fazer obedecer aos seus
desígnios”.
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