17 de março de 2018

Bach/Busoni/Beethoven (ECM, 2017)

Noutros tempos, em recitais de piano, como nos de Arturo Benedetti Michelangeli, por exemplo, apresentavam-se com frequência programas com equações deste género: Bach/Busoni e Beethoven. Ou seja, creditava-se mais depressa o Busoni transcritor do que o compositor. Não é o caso, com o casal Shiokawa-Schiff, que estará segunda-feira à noite em Lisboa a tocar Bach a bordo da formação Cappella Andrea Barca (que tem concerto marcado para o Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian), a incluir nesta sua gravação a “Sonata para Violino e Piano Nº 2”, em Mi menor, Op. 36, do italiano. Percebe-se: a obra pode ser entendida como uma prótese contra o anacronismo, ligando Bach, de quem Busoni foi um incansável paladino, a Beethoven, cuja célebre formulação do opúsculo 27, o par de sonatas Quasi una fantasia, se repete aqui. Mas, na realidade, trata-se de um incentivo à desconcentração. Escutar este Busoni entre os transcendentes Bach, de “Sonata para Violino e Cravo Nº 3”, em Mi maior, BWV 1016, e Beethoven, de “Sonata para Violino e Piano Nº 10”, em Sol maior, Op. 96, será um pouco como regressar a uma casa de família após uma daquelas improváveis tempestades dos filmes-catástrofe, em que se dão em simultâneo inundações e incêndios, tufões e tremores de terra, e do céu caem tubarões, e respirar de alívio ao verificar que está tudo no sítio e que as coisas vão ficar como antes. Só no cinema. 

Isto é, mesmo em estruturas que se supõe durarem para sempre, será, antes, uma forma de relembrar que, na vida, se sucedem muitas vezes – para não dizer que amiúde coexistem – ciclos de criação e destruição, o que Busoni testemunhou em primeira mão, no virar do século passado, quando o assalto à tonalidade da Segunda Escola de Viena, que encorajou, reduziu muitas dessas estruturas a escombros. (Mais tarde, Kurt Weill, um dos seus alunos, afirmou: “Tínhamo-nos libertado de amarras, mas não sabíamos o que fazer com a liberdade. Tínhamos os olhos postos no horizonte, mas não soubemos ver de onde vínhamos. Até que Busoni chegou a Berlim.”) Dir-se-iam preocupações que têm andado na cabeça de Schiff, em virtude do que tem escrito acerca do regime de Viktor Orbán, na sua Hungria natal. Talvez por isso tanto toque Bach, ato que disse um dia ser como tomar um duche quando se sente sujo.

Sem comentários:

Enviar um comentário