3 de março de 2018

Keiji Haino/John Butcher “Light Never Bright Enough” (Otoroku, 2017)


De âmbito praticamente sinfónico no que inclui de mais elevado, este “Light Never Bright Enough” não abdica da víscera da intimidade. Ou seja, nesta atuação gravada ao vivo a 9 de julho de 2016 no Cafe Oto, em Londres, Haino e Butcher, figuras habitualmente isoladas naqueles recitais em que se dão tensas autópsias ao solilóquio, aplicam-se a gerar enzimas capazes de catalisar o que um e outro possuem de mais indigesto. O resultado – embora se trate de uma característica algo anatemática no contexto da improvisação livre – é profundamente narrativo, com Butcher, de repente, a deixar-se atrair por aqueles acordes convulsos que Haino torce à guitarra como um caça-tempestades das Grandes Planícies vai atrás de uma nuvem escura. Como é óbvio, alguém que os escutasse sem os ver teria dificuldade em conciliar som e imagem, o que, de certo modo, em certas mentes, os reduziria a peões da arte conceptual – mas na verdade há uma crueza tão táctil naquilo que fazem, que, com franqueza, o mais estranho é Haino não ter ficado com os seus longos cabelos eriçados em virtude da muita eletricidade que à sua volta acumulou. 

Como se costuma lembrar, teria a seu lado alguém equipado a escalpelar o fenómeno ao pormenor: Butcher doutorou-se em Física antes de se dedicar a tempo inteiro à música e supõe-se que alguma da sua curiosidade por partículas elementares se terá transferido de uma disciplina à outra. Por sinal, será dos poucos com propriedade para reconhecer o carácter infinitesimal daquilo que faz em palco, o que, por sua vez, o tornará particularmente sensível às circunstâncias únicas de cada concerto. Ouvi-lo com Haino implica imaginá-lo a lidar com um conjunto inusitado de restrições: uma delas, porventura a mais inesperada mas também a mais desarmante, dá-se quando, de súbito, o japonês tranca num pedal em contínua repetição um desfigurado espectro tonal, larga a guitarra e se põe a soprar num género de charamela chinesa – a seu lado, após uma pausa para pensar, Butcher fecha os olhos, respira fundo e aceita compor com a aparição um hino a vidas passadas. E, aí, ficam um só.

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