24 de março de 2018

Debussy: Estampes; Préludes I & Debussy: Préludes II; En Blanc Et Noir (Deutsche Grammophon, 2018)


Falecia há 100 anos Claude Debussy, na madrugada de 24 para 25, consumido por um cancro no cólon e sem saber já se o que ouvia vinha dele ou dos céus, com o Canhão de Paris a lançar projéteis de hora a hora sobre a cidade a partir de posições alemãs à distância de 100 km, cada granada aí com uns 100 kg. Enquanto ia enterrar, a 29, um obus bombardeou parte da Igreja de São Gervásio e São Protásio, levando consigo quase 100 dos fiéis que na paróquia se reuniam para o serviço litúrgico da Sexta-Feira Santa mas, por mero acaso, poupando à destruição o órgão em que a dinastia Couperin tocou durante dois séculos, o que, claro está, tivesse ele sobrevivido à Grande Guerra, é perfeitamente possível que Debussy visse como um sinal. Incapaz de participar no conflito, havia no verão de 1915 composto “En blanc et noir”, para dois pianos, onde incluía a seguinte dedicatória: “Au Lieutenant Jacques Charlot tué à l’ennemi en 1915, le 3 mars.” Um por um, a certa altura, a peça desarranja os constituintes de um famoso hino luterano e cita a “Marselhesa”, reencontrando-se assim aquele que, em 1914, numa carta a Robert Godet, um amigo de longa data, dizia: “Sinto-me tão diminuído! Ah, aquele mágico, que tanto admiravas em mim, onde está ele agora?”

Pois, 100 anos após a sua morte, está, por exemplo, nas mãos da indústria fonográfica, que permanece sob o seu feitiço e aproveita a efeméride para colocar no mercado títulos como “Complete Works: The Centenary Edition” (33 CD, Warner), “Complete Works” (22 CD + 2 DVD, Deutsche Grammophon), “Édition Centenaire” (4 CD, Sony, que traz de volta ao mundo dos vivos a gravação de Catherine Collard de “Prelúdios”), “Complete Piano Works” (5 CD, Harmonia Mundi, que reedita a integral de Alain Planès) e LP de Krystian Zimerman, Arturo Benedetti Michelangeli e da Cleveland Orchestra dirigida por Pierre Boulez a si dedicados. As maiores revelações guardam-se para 27 de abril, quando a Erato lançar “Centenary Discoveries”, e, até agora, também na Erato, nenhum título se aproxima do postulado por “Sonates & Trios”, com Emmanuel Pahud (flauta), Renaud Capuçon (violino), Bertrand Chamayou (piano), Edgar Moreau (violoncelo), Gérard Caussé (violeta) e Marie-Pierre Langlamet (harpa) consagrados aos seus derradeiros opúsculos sem cair na tentação de transformar qualquer investida na sua obra numa espécie de parque temático devotado ao insólito, numa área em estado de exceção em que se sujeita Debussy a um tipo de solidão que não se deseja a ninguém.

“Creio que Debussy era um solitário”, dizia Daniel Barenboim em “Entre quatre-z-yeux”, um documentário de Paul Smaczny, de 1999, agora reposto nos escaparates em DVD e Blu-Ray como “Daniel Barenboim plays and explains Les Préludes” (EuroArts). “Estava sozinho naquilo que trouxe para a música. Isto é, sabemos que teve muitos contactos com os seus contemporâneos – com pessoas como Satie ou Stravinsky – mas acho que ele era diferente. Parece-me que foi alguém que permaneceu muito reservado, muito sigiloso. E parte da ideia de criar uma ilusão tem a ver com isso, com secretismo.” Ao que tudo indica, o filme deixava-se inspirar por uma frase de Louisa Liebich saída de um texto seu publicado em 1918, em “The Musical Times”: designava-se “An Englishwoman’s Memories of Debussy” e nele lia-se que, num recital à porta fechada, Debussy tinha dito que os prelúdios só deveriam ser tocados na intimidade – entre quatro paredes, frente a frente, olhos nos olhos (“entre quatre yeux”, em francês). “Isto é a arte da sugestão. A arte da ilusão”, explica Barenboim para a câmara. “Toda a música o é, de certa forma, mas mais ainda a de Debussy. A ilusão de que há um caminho… Não necessariamente a seguir. Como uma paisagem vista ao longe de uma janela.”

Não admira que a sua visão do primeiro livro de “Prelúdios” esteja tão embaciada. Aliás, até a imagem do filme, rodado em Reus, na Catalunha, em espaços como Institut Pere Mata e Casa Navas, se diria deslustrada pela luz bruxuleante do ‘foco suave’. Esta aversão ao naturalismo, que se diria conforme à índole do compositor, tem como consequência a promoção da cultura do medo. E, na estética de Debussy, como Gieseking tornou claro, esse receio por tudo o que é banal pode em si mesmo causar distorções tão grandes quanto o ato de sucumbir à banalidade. Ou seja, arrisca-se a tornar submisso o que era insubordinado. Em boa hora, então, decidiu Barenboim complementar estes “Prelúdios” (gravados em 1998 para o filme e agora licenciados à DG) com uma recém-captada “Estampes” repleta de tridimensionalidade. É algo em que se pensa ao escutar Pollini no segundo livro de “Prelúdios”, quando lhes atribui a transparência e a exactidão necessárias para que se compreendam pelo salto no escuro que foram. Frente a frente, dois modelos de interpretação muito diferentes, quase antagónicos. Mas, no seu melhor, capazes de fazer jus à frase que Mário de Sá-Carneiro deixou num poema, em Paris, estava Debussy moribundo: “Quando chego, o piano estala agoiro.”

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