10 de novembro de 2018

Kamal Keila “Muslims And Christians” (Habibi Funk, 2018)

Certa vez, em Marrocos, um motorista berbere que discursava sobre o assunto como se as religiões monoteístas fossem um fenómeno recente contou-me a história de uma tribo nómada que vivia espalhada pelo deserto na altura em que surgiram os primeiros colonatos muçulmanos e cristãos. Daí em diante, dizia, sempre que os seus líderes previam algum tipo de ameaça – em tempos de fome, seca ou epidemias – faziam um dos seus observar secretamente os movimentos e conversações dos forasteiros mais próximos de modo a indicar com precisão de que tipo de povoado se tratava: se muçulmano ou cristão. Devidamente informados, os líderes da tribo tomavam a sua decisão e anunciavam em voz alta o que nestas ocasiões sempre se imagina alguém a dizer desde que Abraão foi impelido a deixar Ur: “Embora, pessoal! Vocês sabem o que fazer!” E todos se puseram a tirar o mais depressa possível das cestas e alforges os acessórios necessários para se fazer passar por correligionários dessa estranha gente que se fixava no meio do nada a lavrar a terra e a adorar um só deus. Foram sempre recebidos de braços abertos.

Não tendo que o tornar partícipe da moral da história, é óbvio que quando Kamal Keila compôs uma canção como ‘Muslims and Christians’ (“Não discutam/ O Sudão é a nossa pátria/ De norte a sul/ Muçulmanos e cristãos/ Cristãos e muçulmanos/ Cantem pela paz”) desejava um desfecho deste género. Não estava escrito – e a cidade em que ainda vive, Cartum, edificada que está naquele ponto onde o Nilo Branco e o Nilo Azul se juntam num rio só, não soube aproveitar a metáfora que tinha mesmo debaixo do nariz. Aliás, Kamal terá desconfiado que iria ser assim quando em 2005, em Nairobi, por ocasião do Tratado de Naivasha e depois de muito apropriadamente ter cantado ‘Muslims and Christians’ nas cerimónias oficiais que davam por encerrado o conflito entre muçulmanos e cristãos no seu país, ouviu isto da boca de um emissário de Omar al-Bashir: “Que raio estás para aí a dizer? O Sudão é uma nação árabe!” Ficou de coração partido, tal como o Sudão está hoje dividido em dois. Nessa medida, o maior mérito deste conjunto de gravações inéditas (de 1992) é tornar a juntar as peças que entretanto se soltaram. Sem nunca ter um disco editado antes, é como ele canta desde os anos 70: “Sudão/ No coração de África”.

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