26 de janeiro de 2019

Keith Jarrett "La Fenice" (ECM, 2018)

Quando completava cinco décadas de atividade em nome próprio, Keith Jarrett renunciou ao privilégio enunciado por alturas do seu primeiro disco de piano solo (“Facing You”) e cancelou os seus concertos – incluindo o da última Bienal de Veneza, em que seria agraciado com um prémio especial de carreira. Talvez tenha sido essa a sua motivação para ir à arca frigorífica à cata desta gravação (de julho de 2006, na mesmíssima cidade), cujo simbolismo é, até, algo redentor: afinal, a fénix era aquele pássaro que na mitologia grega ressurgia das próprias cinzas – tal como o Gran Teatro La Fenice, aliás, que ardeu três vezes desde a sua construção, a última das quais em 1996, estava Jarrett a ser devorado pela doença sistémica de intolerância ao esforço, que o pôs a sentir-se entre a vida e a morte durante um par de anos.

Trata-se, portanto, de renascimento, para não dizer imortalidade, que parece mal, embora Jarrett interrompa o seu extemporâneo fluxo de improvisação, só, para a certa altura tocar uma canção (‘The Sun Whose Rays’, da ópera cómica “Mikado”, de Gilbert & Sullivan) que inclui estes versos: “I mean to rule the earth/ As he the sky/ We really know our worth/ The sun and I” – isto, numa casa que testemunhou em pleno ottocento o contorcionismo laríngeo de acordo com Rossini, Donizetti e Bellini! Não que os grunhidos de Jarrett lhes fiquem muito aquém: por sinal, no capítulo das vocalizações não-verbais, o pianista seria um formidável objeto de estudo caso alguém quisesse transferir para aquilo que faz em palco o que no artigo “Tennis grunts communicate acoustic cues to sex and contest outcome” foi identificado em campos de ténis. Quanto ao que faz ao teclado, não obstante a delicadeza de um par de standards, está escrito desde 1900, em “Os Buddenbrook”, de Thomas Mann: “Há algo de pecaminoso no excesso e sofreguidão com que cada invenção é desfrutada e explorada, algo de desespero cínico, semelhante à ânsia de volúpia e à avidez decadente na forma como se suga a última gota de doçura da música até à exaustão, ao asco, ao tédio”. Até morrer, para depois renascer.

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