Composto por aglutinação a partir das palavras heart (coração) e earth
(terra), eis que surge Hearth, o novo grupo de Kaja Draksler (piano), Ada Rave
(saxofone tenor), Mette Rasmussen (sax. alto) e Susana Santos Silva (trompete).
Claro que se o processo linguístico tivesse como elementos formadores heart e mothers (mães) seria mais engraçado: em alusão ao filme de Michael
Lehmann (1988), Heathers daria um ótimo nome para uma banda de quatro mulheres.
Se bem que, aqui, ninguém confundiria as inconformadas instrumentistas com essas
Heathers propriamente ditas – olhem para a foto e digam lá se não as imaginam
muito mais chegadas à personagem de Veronica (Winona Ryder)? Como ela, a cada
festival, quase se adivinha terem vontade de afirmar: “[…] My love – there's a new
sheriff in town.” De facto, parecem hoje tão destinadas a questionar
arquétipos, no jazz, quanto há 40 anos estavam as Slits, no punk. Ainda que, à
partida, de modo involuntário, se é que podemos extrapolar com base no que
declarou Santos Silva a “Jazz.pt”, há coisa de um ano: “a ideia […] não foi
formar um grupo só de mulheres – juntámo-nos porque queríamos simplesmente tocar
juntas. […] Agora, percebo que existia realmente alguma discriminação e certos
preconceitos que se manifestam muitas vezes de formas subtis, dissimuladas e,
até, imperceptíveis. É [uma questão] cultural. E isso sente-se particularmente
em sociedades assentes em valores católicos e tradicionalistas, como [em] Portugal”.
Curiosamente, ou não, é a Portugal que vêm fazer a sua primeira gravação, na
Clean Feed, dando seguimento, na chancela, a um conjunto de discos dignos de
nota que indicam que fizeram questão de discutir individualmente géneros de
música antes de disputar coletivamente músicas de género: “The Lives of Many
Others” (Draksler), “The Sea, the Storm and the Full Moon” (Rave), “A View of
the Moon” (Rasmussen) ou “All the Rivers” (Santos Silva). Em Portalegre, no
JazzFest, sobem ao palco de hoje a oito dias, às 21h30, e constituem o expoente
de um programa que inclui, ainda, Marc Ribot (quinta, 21h30), Hedvig Mollestad
Trio (sexta, 21h30), Carlos Bica/Daniel Erdmann/DJ Illvibe (sábado, 23h) e o
quarteto de Caterina Palazzi que em 2018 lançou o perverso “Sudoku Killer” (2 e
3, 23h).
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
27 de abril de 2019
Agenda: 16º Festival Internacional de Jazz de Portalegre – Portalegre JazzFest
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Milton Banana “The Rhythm and the Sound of Bossa Nova/Balançando” (Aquarela do Brasil, re. 2019)
Milton
Banana acertou na muche quando intitulou como “Tipo Exportação (Samba é Isso)” um dos seus
álbuns. Afinal, tinha contribuído decisivamente para o fenómeno. Em ‘Vaia de
Bêbado Não Vale’, Tom Zé versificou-o assim: “Quando aquele ano começou/ Nas
Águas de Março de 58/ O Brasil só exportava matéria-prima/ Essa tisana/ Isto é
o mais baixo grau da capacidade humana/ E o mundo dizia/ Que povinho retardado/
Que povo mais atrasado/ A surpresa foi que no fim daquele mesmo ano/ Para toda
a parte/ O Brasil d’O Pato/ Com a bossa-nova/ Exportava arte/ O grau mais alto
da capacidade humana/ E a Europa, assombrada:/ Que povinho audacioso/ Que povo
civilizado.” Como se sabe, mesmo após ter conquistado o planeta, a divisão do
espólio da bossa gerou sobretudo ressentimentos: “Assim como João Gilberto com a batida do violão, Milton
Banana seria um homem rico se tivesse recebido uma fração de centavo por cada
disco ou show em que os bateristas
internacionais usaram a batida da Bossa Nova”, escreveu Ruy Castro em “A Onda
Que se Ergueu no Mar”, fantasiando com uma balança comercial mais equilibrada.
Talvez por isso, em junho de 1990, Edison Machado, um dos pares de Milton, no
pequeno concerto na boate People com o qual anunciava a quem quisesse ouvir o
seu regresso ao Brasil depois de catorze anos passados no exterior, se tenha a
certa altura chegado ao microfone e desabafado: “Sabe lá o que é ganhar pouco e
divulgar um continente?” Passados três meses estava morto. Também Milton viria
a falecer algo esquecido, sem privilégios, nem pensões, faz agora 20 anos, a 15
de maio de 1999 (não a 22 de maio de 1998, conforme se lê na contracapa da
presente reedição), com a mágoa de ofensas passadas concentrada numa lapidar mensagem
de luto deixada com uma coroa de flores no seu funeral: “A Milton, a quem o
Brasil não homenageou nem reconheceu nunca. Ass.: todos os músicos do Brasil”.
Foi João Gilberto quem a enviou – o mesmo com que Banana havia gravado “Chega
de Saudade” e “Getz/Gilberto”. Estes extraordinários LP em nome próprio lançou-os
em 1963 e 1966: uma catedral de ritmo feita de pele e osso.
19 de abril de 2019
“Bunny Lee: Dreads Enter the Gates With Praise” (Soul Jazz, 2019)
Num
“estudo estratigráfico”, dizia-me há coisa de 20 anos Steve Barrow, coautor de
“The Rough Guide to Reggae”, há, ali, algures entre finais de 60 e meados de
70, um “conjunto de rochas sedimentares com a marca de Bunny Lee”. Falava da
História da música, claro. E, se bem me lembro, para tornar a expressão do seu
pensamento mais viva, andava à cata de figuras de estilo que de certo modo se
equivalessem à linguagem do produtor jamaicano nesse período: em partes iguais
lúcida e elusiva, espessa e espectral, francamente alusiva e profundamente
autorreferencial. No fundo, Barrow tentava retratar um ciclo algo axiomático no
reggae, quando Lee, coadjuvado por
King Tubby e Prince Jammy, e sugando-o até ao tutano, estimulou uma dramática
reconfiguração dos seus constituintes elementares, libertando-o de substâncias espúrias,
reduzindo-lhe as características formais ao mínimo indispensável mas tornando-o
ainda mais paradoxal: uma iteração ao mesmo tempo mais estática e elástica,
mais estóica e instável. Por isso, estranha-se que Bunny Lee tenha demorado
tanto a entrar na esfera de ação da Soul Jazz – daquelas em atividade, porventura
a editora mais empenhada em proceder ao levantamento geológico do reggae nos últimos anos.
Poderá em parte
dever-se este atraso àquela espécie de efeito Robinson Crusoé que por vezes
aflige o principal responsável pelo selo britânico, Stuart Baker, alguém que
nas suas expedições dá mostras de ansiar pelo momento em que numa ilha deserta,
como a personagem de Daniel Defoe, encontra “a pegada recente de um pé
descalço” na areia. Mas, como é óbvio, nesse particular, o espólio de Bunny Lee
foi já mais palmilhado que a Praia da Rocha em agosto, e muito do que de mais
importante criou em laboratório tem sido esta década relançado em sucessivas compilações.
Ainda assim, de maneira espantosa, esta antologia mantém a integridade sem ter
de repetir nenhum dos temas das outras – a Soul Jazz não o diz, mas o material
aqui coligido foi gravado entre 1973 e 1978 e colocado no mercado pelas
chancelas da Attack (Johnny Clarke, Jackie Edwards, Mighty Diamonds, Prince
Jazzbo, Shorty The President), Justice (Jah Stitch) e Third World (Tommy
McCook, Gene Rondo, Jah Youth, Uniques, Winston Wright, Dillinger). Não admira
que Bunny Lee tivesse sido apelidado de “fantasma que assombra os estúdios”! Este
é o seu Boo!
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Fred Frith “All Is Always Now – Live At The Stone” (Intakt, 2019)
É o
próprio Frith que logo explica a que vem, em breve nota introdutória: “Entre
2006 e 2016 dei 80 concertos na Stone [a irredutível e irredimível sala de
espetáculos fundada por John Zorn numa esquina da Greenwich Village em 2005 e
há um ano transferida fisicamente para o espaço do New Glass Box Theatre, no campus da New School]. Uns foram
gravados, outros não. A música [essa] foi sempre improvisada. Sem quaisquer ensaios,
sem grandes conversas. Em alguns casos nunca havíamos tocado juntos, noutros
conhecíamo-nos perfeitamente uns aos outros.” Trata-se de uma apresentação
factual que logo traz à memória o que escrevia por alturas de “Guitar Solos”, o
seu primeiro disco: “Todos os temas foram improvisados: uns completamente,
outros a partir de esboços preconcebidos.” Isto foi em 1974. E em todos estes anos
pouco mudou. Aliás, no livreto de “Closer to the Ground”, o álbum que gravou em
janeiro de 2018 com Jason Hoopes e Jordan Glenn, medita sobre outra constante:
“Tomei há pouco consciência que desde 1965 não se passou um dia em que não
fizesse parte de uma banda. Aparentemente é algo de que necessito. É um modo
como nenhum outro de obter resultados. É como estar na rua e em casa ao mesmo
tempo.”
O que lembra uma coisa que disse no verão de 2014, em entrevista ao
Expresso: “Fazer parte de um coletivo apresenta um conjunto de desafios únicos,
é certo, mas possui, também, vantagens muito evidentes.” No fundo, é a essa
predileção por sistemas colaborativos que “All is Always Now” dá, agora, expressão,
de maneira exponencial: em três horas de música, Frith toca em trio com Hoopes
e Glenn, Nava Dunkelman e Amma Ateria, Theresa Wong e Annie Lewandowski, Ikue
Mori e Nate Wooley, Pauline Oliveros e Else Olsen Storesund, e em duo com Sudhu
Tewari, Sylvie Courvoisier, Clara Weil, Miya Masaoka, Evan Parker, Gyan Riley,
Shelley Hirsch e Laurie Anderson [na foto]. Gente suficientemente parecida e em
simultâneo bastamente diferente para que, no seu melhor (nas peças com os últimos
três nomes da lista, digamos), a improvisação se revele uma forma de, na
música, cantar aquilo que não pode mesmo ser cantado, que existe apenas na
sempiternidade, em elisões e ilusões que, mais que intuir, se podem habitar, no
ponto em que é e já não é de cada um tudo aquilo que se pensa e sente. Frith
tem esperança que seja assim.
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