28 de dezembro de 2019

Rippe: Un Perfaict Sonneur de Leut (Harmonia Mundi, 2019)


Só conheço um disco consagrado à obra de Albert de Rippe (ca. 1480-1551): “Tabulature de Leut” (1978), de Hopkinson Smith. Já o nome de Alberto da Ripa aparece em “Early Italian Lute Music” (1986), de Franklin Lei, e o de Alberto da Mantova, por sua vez, surge em “Italian Lute Virtuosi of the Renaissance” (2016), de Jakob Lindberg. Agora, porque até há quem lhe chame Albarti, vem Paul O’Dette recordar que se trata de uma e só pessoa – esquece-se apenas de referir que incluiu três peças de Ripa no seu “Dolcissima et Amorosa” (1994), mas o ponto nem é esse. A questão, no fundo, é que, não bastando, O’Dette ainda crê que Alberto foi muito mais gente: pelo menos, especula o norte-americano, que terá forçosamente de ser um dos “outros bons autores” em 1552 e 1558 mencionados num par de edições da Fezandat genericamente intituladas “Livre de Tabulature de Leut, contenant plusieurs chansons, Fantasies, Pavanes & Gaillardes, Composées par maistre Guillaume Morlaye jouer de Leut & autres bons Autheurs”. Aliás, a mais antiga das quais coincidia com a publicação de um primeiro volume – póstumo, já – dedicado à obra de “messire Albert de Rippe de Mantoue, seigneur du Carois, joueur de leut et varlet de chambre du Roy nostre sire.”

Apresentação, por sinal, que remete para o favor real de que gozava o compositor na corte de Francisco I de França. E não custa nada imaginá-lo a um passo ou dois do rei, de alaúde na mão, a dedilhar um madrigal enquanto Francisco, “O de Nariz Comprido”, contemplava de um lado para o outro uma aquisição recente chamada “Mona Lisa”. Já outras aventuras reais – e quem conhece o “Rigoletto”, de Verdi, está perfeitamente informado quanto às facadas que sua majestade dava no matrimónio – teriam porventura de ser acompanhadas de uma galharda ou de uma pavana. Não interessa: quando lhe faltavam originais, Ripa não tinha problema nenhum em pegar em criações de Pierre Sandrin, Costanzo Festa ou Clément Janequin e lançá-las numa espécie de limbo tonal – ‘L’eccho’, chamou a uma. Quando morreu, de calculose renal, Jean-Antoine de Baïf, poeta da Plêiade, escreveu que ele movia pedras ao tocar. Não sei. Mas nas mãos de O’Dette é de fazer chorar as pedras da calçada.

Michael Formanek Very Practical Trio “Even Better” (Intakt, 2019)

Quando escreveram ‘Money (That’s What I Want)’, há 60 anos, Janie Bradford e Berry Gordy, o fundador da Motown, estavam a ser práticos – mais, realmente, só os Sigue Sigue Sputnik, que em meados de 80 incluíram anúncios entre os temas de “Flaunt It”, ou Belchior, que cantou: “Hoje eu não toco por música/ Eu toco por dinheiro.” Por isso, nos dias que correm, no mundo do jazz, quando Michael Formanek, Tim Berne e Mary Halvorson se apresentam como Very Practical Trio estão praticamente a fazer um convite à ironia – e, caso fizesse crítica musical, imagina-se o painel do “Passadeira Vermelha” a reagir a este disco dizendo coisas como: ‘Ai, não acho nada prático!’ Com uma ressalva para o sentido prático que Mary revela em palco, para o qual se desloca sempre de mala ao ombro, estão, no fundo, a ser tão literais quanto Satie, que dizia: “Não entreis numa casa que não usa a música para mobilar.” Ou seja, sabendo da poda, ainda que intrincadamente labiríntica aqui e inevitavelmente arbitrária acolá, estão a apelar para que não se caracterize à partida a música que os três fazem com palavras que signifiquem o oposto de prático.

Não admira, vindo de quem vem – basta lembrar o título daquele disco de Formanek, “Am I Bothering You?” (1998), em que se dirigia a todos quanto num clube de jazz aproveitam os solos dos contrabaixistas para ir ao bar ou à retrete. Por isso, também, neste particular, e em termos aproximados, esta adesão ao modelo insuspeito, íntegro e irredutível da canção, onde habitualmente se corta a gordura em excesso, o supérfluo, o descartável, o desnecessário, até ao osso. Em ‘Like Statues’, por exemplo, recorre-se à aura do blues – um estilo tão inequívoco que nem admite a arguição de ilegitimidade (um teste: qual destes nomes lhe parece mais verdadeiro – McKinley Morganfield ou Muddy Waters?) – e a terminar o CD tocam ‘Jade Visions’, de Scott LaFaro, na cadência de ‘Falling’, do genérico de “Twin Peaks”. Há 9 anos, à revista “Bass Player”, Formanek explicava que não “apreciava esse tipo de limitações [que se impõem à improvisação]”, que se entusiasmava quando “encontrava um groove” e podia tomar outras músicas como referência. Na prática, é o que pretende este Very Practical Trio: pegar naquilo que pensamos conhecer e torná-lo ainda melhor.

21 de dezembro de 2019

Melhores do Ano [Best Classical, Jazz and World Music releases of 2019]


Allegri/Monteverdi: Anamorfosi / Le Poème Harmonique (Alpha)
Brumel: The Complete Lamentations / Musica Secreta (Obsidian)
Joachim: Fanm D’Ayiti / Spektral Quartet (New Amsterdam)
Lamb: Atmospheres Transparent/Opaque / Ensemble Dedalus (New World)
Leuven Chansonnier / Sollazzo Ensemble (Ambronay)
Lymburgia: Gaude Felix Padua / Le Miroir de Musique (Ricercar)
Murail: Portulan / Ensemble Cairn (Kairos)
Ockeghem: Complete Songs Volume 1 / Blue Heron (Blue Heron)
Rore: Missa Vivat Felix Hercules / Weser-Renaissance (Cpo)
Venez Chère Ombre / Eva Zaïcik, Le Consort (Alpha)

Menções honrosas: “Become Desert”, de John Luther Adams (Cantaloupe); o Binchois Consort em “Music for Saint Katherine of Alexandria” (Hyperion); “Nomaden”, de Joël Bons (BIS); o Illyria Consort em “Sonate da Camera Nos 7-12”, de Carbonelli (Delphian); o Orlando Consort em “Lament for Constantinople & Other Songs”, de Dufay (Hyperion); o Ensemble Gilles Binchois em “Messes de Barcelone et d'Apt” (Evidence); “Ensemble Works”, de Eva-Maria Houben (Edition Wandelweiser); La Reverdie em “L’Occhio Del Cor”, de Landini (Arcana); “Occam Océan, Vol 2”, de Eliane Radigue (Shiiin); o Helsinki Chamber Choir em “Vigilia”, de Rautavaara (BIS); o Kronos Quartet em “Sun Rings”, de Terry Riley (Nonesuch); Mirga Grazinyte-Tyla em “Symphonies Nos. 2 & 21”, de Weinberg (Deutsche Grammophon); “Fire in My Mouth”, de Julia Wolfe (Decca). Um disco que podia estar na coluna da direita: “Antichamber Music”, de Claudia Solal, Tomeka Reid, Katherine Young e Benoît Delbecq (Bridge Sessions).


Abdullah Ibrahim “Dream Time” (Enja)
Eve Risser “Après un rêve” (Clean Feed)
Ivo Perelman, Matthew Shipp, William Parker, Bobby Kapp “Ineffable Joy” (ESP)
John Butcher & Rhodri Davies “Drunk on Dreams” (Cejero)
Matana Roberts “Coin Coin Chapter Four: Memphis” (Constellation)
Peter Brötzmann “I Surrender Dear” (Trost)
Rodrigo Amado/Chris Corsano “No Place to Fall” (Astral Spirits)
Susan Alcorn/Joe McPhee/Ken Vandermark “Invitation to a Dream” (Astral Spirits)
Tyshawn Sorey and Marilyn Crispell “The Adornment of Time” (Pi Recordings)
Whit Dickey/Kirk Knuffke “Drone Dream” (NoBusiness)

Menções honrosas: Aki Takase em “Hokusai” (Intakt); Angles 9 em “Beyond Us” (Clean Feed); Arashi em “Jikan” (PNL); Burton Greene, Damon Smith e Bob Moses em “Life’s Intense Mystery” (Astral Spirits); David Torn, Tim Berne e Ches Smith em “Sun of Goldfinger” (ECM); Evan Parker e Trance Map + em “Crepuscule in Nickelsdorf” (Intakt); From Wolves to Whales em “Strandwall” (Aerophonics); Jimmy Giuffre 3 em “Graz Live 1961” (Ezz-thetics); Paul Flaherty em “Focused & Bewildered” (Relative Pitch); Stellari String Quartet em “Vulcan” (Emanem); Taylor Ho Bynum em “The Ambiguity Manifesto” (Firehouse 12). Dos arquivos: Don Rendell e Ian Carr na Jazzman; “Musical Prophet”, de Eric Dolphy (Resonance); “Alors Nosferatu Combina un Plan Ingénieux”, de François Tusques (Cacophonic); “Spirits Rejoice!”, de Louis Moholo (Otoroku); Sounds of Liberation na Corbett vs. Dempsey; Sam Rivers na NoBusiness. Um disco que podia estar na coluna da esquerda: “Invisible Horizon”, de Jon Irabagon (Irabbagast).


Issam Hajali “Mouasalat Ila Jacad El Ard” (Habibi Funk)
El Wali “Tiris” (Sahel Sounds)
Ustad Saami “God Is Not a Terrorist” (Glitterbeat)
The Good Ones “Rwanda, You Should Be Loved” (Anti-)
Mazouni “Un Dandy en Exil” (Born Bad)
Antoinette Konan “Antoinette Konan” (Awesome Tapes from Africa)
V/A “Early Congo Music 1946-62” (El Sur)
François N’Gwa “Ogooué” (Into the Deep Treasury)
V/A “Pour Me a Grog” (Ostinato)
V/A “Jambú e os Míticos Sons da Amazônia” (Analog Africa)

Menções honrosas: os África Negra de “Alia Cu Omali” (Mar & Sol); os Kokoko! de “Fongola” (Transgressive); Julie Coker em “A Life in the Limelight – Lagos Disco & Itseriki Highlife, 1976-1981” (Kalita); Bassekou Kouyaté & Ngoni Ba em “Miri” (Out Here); Sir China Peters com “Sewele” (Strut); Chief Stephen Osita Osadebe com “Osondi Owendi” (Hive Mind); as reedições de Om Kalsoum na Souma; as reedições de Xoliso, Sidiku Buari, Dytomite Starlite Band of Ghana ou Bota Tabansi International na BBE. Mais meia dúzia de compilações: “Mogadisco – Dancing Mogadishu (Somalia, 1972-1991)”, na Analog Africa; “Kinshasa 1978 (Originals and Reconstructions)”, na Crammed; “Congo Revolution – Revolutionary and Evolutionary Sounds from the Two Congos, 1955-62” e “Style & Fashion”, na Soul Jazz; “Alefa Madagascar! Salegy, Soukous & Soul from the Red Island, 1974-1984” e “Nigeria 70 – No Wahala: Highlife, Afro Funk & Juju, 1973-1987”, na Strut.