14 de dezembro de 2019

Evan Parker, Matthew Wright, Trance Map+ “Crepuscule In Nickelsdorf” (Intakt, 2019)

Agora que o ano termina, impõe-se pegar em “Crepuscule in Nickelsdorf”. E o que logo salta à memória é o que Parker, como um agente ao serviço de Morfeu, sugeria por alturas de “Trance Map” (2011): pô-lo a tocar baixinho pela noite dentro, até vir o João Pestana, e fechar os olhos. “Bons sonhos!”, desejava ele, em notas de apresentação. Em parte, é o que faço. Mas ignoro a observância do ritmo circadiano e, a meio da manhã, falta-me melatonina. Talvez por isso não me consiga libertar deste título. “Cego, tacteio em vão a claridade/ Louco, cuspo no rosto da razão/ E deambulo assim/ Dentro de mim/ Negação a negar a negação”, escreveu Torga, e é como me sinto à medida que Parker (saxofone soprano), Wright (gira-discos, sampling em tempo real), Adam Linson (contrabaixo, eletrónica), John Coxon (gira-discos, eletrónica) e Ashley Wales (eletrónica) me largam bem no meio do que parece ser um enxame, um bando, uma nuvem, um fungagá da bicharada que diz: “Acorda! Voa! Canta! Acasala! Morre!” – tal e qual como, em “Bug Music”, David Rothenberg descrevia a sensação de tocar afundado numa onda de insetos. 

Resisto à tentação de tirar o livro da prateleira, até porque, mais ainda do que não saber se este crepúsculo é o que precede a escuridão da noite ou o clarão do dia, me apercebo que é a menção a Nickelsdorf que faz soar os alarmes. Recordo-me de ter lido há pouco tempo um relato qualquer impregnado pela retórica da anti-emigração a propósito do lugarejo, daqueles que nos levam imediatamente a tomar um antiemético, e não sou capaz de sacudir o mal-estar. Para mais – e tudo o que vou agora ouvindo dá mostras de seguir pormenorizadamente o que imagino passar-se nas minhas células nervosas –, lembro-me de ter associado essas notícias a umas páginas de “Apocalipse dos Animais”, um aviso do judaísmo enoquita face à transgressão de fronteiras por parte de seres que “engravidam mulheres e geram” uma descendência que “ataca pássaros e animais selvagens” e que começa “a matar e a devorar homens”. Penso no fado desses pobres coitados de fardo às costas, ali, entre a Hungria e a Áustria, e um melisma levantino de Parker invoca o “No meio da claridade/ Daquele tão triste dia/ Grande, grande era a cidade/ E ninguém me conhecia”. Em “Process and Reality” (1991), Parker documentava a capacidade que a música tem de ocupar o mesmo espaço liminar que os sonhos. E é aí que nos convida uma e outra vez a mergulhar – para não sucumbirmos aos pesadelos.

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