11 de janeiro de 2020

Issam Hajali “Mouasalat Ila Jacad El Ard” (Habibi Funk, 2019)


Na voz de Leão, “O Africano”, Amin Maalouf escreveu assim: “Não venho de nenhum país, de nenhuma cidade, de nenhuma tribo. Sou filho da estrada, a minha pátria é a caravana e a minha vida a mais inesperada das travessias.” Podia estar a descrever o périplo deste conterrâneo seu, que, hoje, a partir de Beirute, recorda nestes termos o exílio na capital francesa ao seu editor: “Paris é uma cidade muito difícil para emigrantes. Custou-me muito a adaptar-me.” Estávamos em 1976-77, e Issam Hajali, como milhares de jovens libaneses, improvisava uma fuga à guerra civil e à ocupação militar síria de sacola ao ombro, guitarra na mão e, no bolso, poupanças que se desvalorizavam ao minuto – quando chegou a França, privado de recursos, trabalhou em fábricas e em supermercados e pôs-se a pedir no metro. “Vindo de um cenário de conflito, ao entrar em contacto com uma cultura nova questionava-me incessantemente,” contou em novembro último ao “Bandcamp Daily”, lembrando que no Líbano havia integrado uma banda de prog que adquiriu alguma notoriedade e que em Paris, entre a diáspora, se via cercado por todos os lados de música árabe. No apogeu do disco sound, a viver no ocidente, como sempre quis, Issam sentia-se na obrigação de olhar para oriente e de fazer o que menos lhe apetecia – pensar nas suas raízes e no que perdeu, até se dar “um renascimento”, admite.

Não estava só. Na mesma altura, longe dali, em plena era Black Rio, uma mão-cheia de compositores brasileiros chegava de armas e bagagens aos centros de poder para provar que pior do que ser da periferia seria vir da província. Um deles, Fagner, explicou ao diário “O Povo” ao que vinha: “Somos os paraíbas das construções, os paus de arara das feiras de São Cristóvão. Os famintos. Chegámos e enfrentámos isso como se estivéssemos entrando noutro país.” Colecionadores de discos do mundo inteiro perceberão o que vou dizer melhor do que ninguém: se tivesse de arrumar por afinidade este “Mouasalat Ila Jacad El Ard” na prateleira, e para nos ficarmos pelo tal punhado de exemplos, colocá-lo-ia junto a “Espelho Cristalino”, de Alceu Valença, a “Coração Selvagem”, de Belchior, a “A Página do Relâmpago Elétrico”, de Beto Guedes, a “Ganga Brasil”, de Ruy Maurity, e ao homónimo de Geraldo Azevedo; todos lançados no mesmo ano – 1977 – e todos produzidos por gente violentamente possuída pelo desejo de regressar ao lugar de onde veio e, em simultâneo, pela vontade de inventar a todo o custo um sítio que substituísse aquele em que se encontrava – e, nem por acaso, Mouasalat Ila Jacad El Ard” traduz-se por “Viagem para Outro Mundo”. Issam gravou-o num dia só, com franceses, argelinos e iranianos de que já não sabe o nome – canta ao violão sobre as incertezas do seu tempo, com um deambulante címbalo na sua peugada a mostrar-lhe ao que renunciou e, como nos êxitos de então de Demis Roussos ou Joe Dassin, sintetizadores em contraponto a revelarem-lhe aquilo a que aspira. Fez umas cópias, em cassete, e, logo a seguir, as malas. De regresso a Beirute, formou os Ferkat Al Ard e, mais tarde, incapaz de viver da música, abriu uma pequena ourivesaria. Mas a sua maior jóia, essa, só agora se deu a conhecer.

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