25 de janeiro de 2020

“Mogadisco: Dancing Mogadishu – Somalia 1972-1991” (Analog Africa, 2019)

Nas idas e vindas da emissora nacional, cujo arquivo espiolhava, Samy Ben Redjeb deslocava-se num todo-o-terreno com vidros à prova de bala e uma escolta de quatro homens armados com AK-47, mas andava com a cabeça na lua. Estava na capital da Somália há um mês e, numa sala de 100 m2, num canto, em equilíbrio precário, por entre cerca de 20.000 bobines, funcionários da Rádio Mogadíscio haviam-lhe apontado uma pilha de fitas por processar: “Trata-se de música que ninguém consegue identificar, na sua maioria instrumental ou um bocado estranha”, diziam-lhe. Redjeb sentia o tempo a dobrar-se sobre si mesmo, as coisas a voltar ao início, embora as feridas que à sua passagem se acumulam estivessem por todo o lado – e talvez tivesse viajado até ali precisamente para lhes arrancar as crostas. 

Na bagagem, levava já formidáveis achados: de 1979, por exemplo, umas gravações da Bakaka Band da altura da Guerra de Ogaden; de 1991, outras da Dur-Dur Band, captadas na Etiópia e no Djibuti, em plena fuga à Guerra Civil. Mas o que mais o impressionava eram os temas de meados de 80 de Omar Shooli (no ritmo dhaanto, cuja síncope é em tudo semelhante à do reggae), de Mukhtar Ramadan Iidi (vocalista da Shareero Band e, depois, da Dur-Dur), dos Iftin (do cantor Mahmud Abdalla Hussen, mais conhecido por Jerry) e de Shimaali Ahmed Shimaali com Ahmed Sharif Killer (quando estavam os dois na Iftin) – devidamente reprocessada no idioma local, uma retransmissão de sinais captados a ocidente que só aquele casamento de conveniência entre o regime de Siad Barre e os EUA permitia. Entrevistando alguns dos músicos que sobreviveram a essa era, Ben Redjeb toma nota de nomes como James Brown, Jimmy Cliff, Fela Kuti, Santana ou Michael Jackson, e assiste, maravilhado, à descrição de noites lendárias passadas entre dignitários do Golfo de Áden nas boates dos hotéis Juba, Al-Uruba, Lido ou Jazeera Palace, hoje em ruínas. No seu próprio quarto, consciente da sua missão – digitalizar o maior número de canções possível para as lançar através da Analog Africa – mas a aguardar indicações do diretor da Rádio, frustrado e vagamente paranóico, Redjeb estava um pouco como Martin Sheen no início de “Apocalypse Now”, à beira de mergulhar no coração das trevas. Na manhã de 11 de dezembro de 2016 acorda com um estrondo: um ataque suicida na zona portuária fazia 30 mortos. Sobressaltado, vê da janela a sua escolta a chegar. Falam como se nada fosse e, na Rádio, após um ligeiro compasso de espera, o seu interlocutor desfaz-se em desculpas, pois atrasou-se a deixar no cemitério o corpo de um amigo apanhado na explosão. Redjeb olha para ele, sem saber bem o que dizer. Não faz mal – na Somália, é para isso mesmo que serve a música.

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