30 de junho de 2012

K.S. Chithra “K.S. Chithra with Ilaiyaraaja” (Finders Keepers, 2012)


A nominal contração Kollywood refere-se ao local onde se concentra a indústria cinematográfica – segunda maior da Índia em volume, difusão e rentabilidade – em língua tâmil, com sede no bairro Kodambakkam, de Chennai, um pólo comercial da Baía de Bengala. E, como em Bollywood, a sua congénere hindi em Bombaim, também aqui se criou uma desproporcional e sincrónica recomposição dos códigos de poder e fantasia metonimicamente associados a Hollywood, com enfática reincidência no filme musical. Essa predominância narrativa da canção coreografada, ainda que de esquemática e arquetípica fundação, associada a licenciosas emissões (há registos de tempos áureos com o lançamento anual de mais de mil títulos no mercado), estimulou variantes de extático experimentalismo e hiperbólico funcionalismo e, fundamentalmente, ancorou-se em figuras de elástica polivalência, com sentido do épico mas minuciosa atenção ao detalhe, exatidão técnica e coloquialismo estilístico, capazes de acompanhar abrangentes alegorias destinadas a dilatar os limites da empatia. É num regime de invariável polarização que editoras como a Finders Keepers – outra de notável pendor antológico é neste domínio a Bombay Connection – visitam estas produções, ainda para mais sugerindo uma análise fraturante da obra audiovisual, exclusivamente focada numa banda sonora em que prevalece o endemicamente excêntrico mas igualmente a caricatura do ocidente. O compositor Ilaiyaraaja e a cantora K.S. Chithra ilustram esta bizarra mimese num libertino compêndio extraído de centenas de colaborações em que, entre 1986 e 1991, temperaram sacarinas indulgências com um intransigente futurismo, equilibrando arrebatamento folclórico e esoterismo robótico, numa ação que traz à memória a Yellow Magic Orchestra e que testemunha esteticamente o ápice e o ocaso tecnológico na música dos anos 80.

23 de junho de 2012

Candy McKenzie “Lee ‘Scratch’ Perry Presents Candy Mckenzie” (Trojan, 2012)


Falta-lhe consistência, direção e consciência dos seus próprios expoentes. E tanto desperta riso quanto compaixão. Pois, embora despreze os elementos necessários à solução dos problemas que levanta, a verdade é que nele se pressente o esfumar dos sonhos de uma talentosa inglesa de vinte e poucos anos que, sem o saber, não ganharia nova oportunidade para os concretizar. E, no entanto, 35 anos após a sua gravação, mesmo tendo este disco permanecido inédito, encontra-se no seu figurino matéria capaz de revelar importantes factos sobre a mais famosa arca perdida da história da música: os estúdios Black Ark de Lee Perry. Nomeadamente, que através desta emissária britânica – e com Ernest Ranglin, Boris Gardiner e os Third World em estado de graça – experimentou o arauto jamaicano a sua própria versão do lovers rock. Ou, confirmando o que a descoberta há seis anos de outro álbum perdido sugeria (nas sessões de dois zairenses publicadas enquanto “Lee Perry presents African Roots”), que, em 77, se transferiria para outros projectos a presença de espírito revelada em “Heart of the Congos” (dos mesmos que agora regressaram numa colaboração com Sun Araw e M. Geddes Gengras). Aliás, terá faltado apenas mais tempo e discernimento, e um empenho maior na composição (são da autoria de McKenzie ou Perry os temas que aqui se acercam de contornos clássicos e versões do eixo country-soul os dispensáveis), para que, também neste caso, o produtor atingisse o grau de invenção patenteado em trabalhos com Max Romeo, Junior Murvin ou Heptones. Mas, à semelhança da estreia dos Congos, este ensaio de McKenzie foi recusado pela Island e à cantora não garantiu mais do que uma posição de segunda linha, fazendo trabalhos de estúdio em Londres no auge das febres acid house e acid jazz e harmonias para Gary Moore, Serge Gainsbourg ou Elton John. Faleceu em 2003.

16 de junho de 2012

Francis Bebey “African Electronic Music 1975-1982” (Born Bad, 2012)


Vão-se relativizando os rótulos e, com o passar dos anos, até a provocante incongruência do camaronês Francis Bebey ganha sentido. Mas nem subordinando o seu inquisitivo espírito ao apócrifo programa estético da electrónica se estabelece um credível precedente esquemático para a sua ação. Porque, ao contrário do que o título desta antologia sugere, não deu à costa mais um insondável visionário agarrado a uma prancheta de módulos. Quanto muito, correspondendo à instigação, ensaiam alguns destes temas estratégias cujo caráter eminentemente lúdico e hedónico evoca peças de Pierre Henry, Holger Czukay ou Terry Riley, embora nada se lhes assemelhe tanto quanto a versão de ‘Soul Makossa’ que o obscuro Rod Hunter criou num sintetizador Moog. Na verdade, a excentricidade de Bebey aproxima-o antes das gravações disponibilizadas por catálogos como Bruton, De Wolfe ou Tele Music para uso comercial (parece, nessa perspetiva, apropriada a gralha que na contracapa desta edição apresenta ‘Super Jungle’ enquanto ‘Super Jingle’). Mas o tom de paródico futurismo das suas vinhetas ao sintetizador e teclados diversos jamais se esgota numa leitura tão utilitária. Aliás, o descomprometido multiculturalismo, a estranha acessibilidade, o sardónico universalismo – tão marcantes, sedutores e imaginativos – que aqui se encontram, não diferem filosoficamente da sua extensa produção inspirada pelas guitarras de Segovia ou Baden Powell, pela polifonia pigmeia ou pela música para sanza (idiofone de lamelas próximo do quissange angolano) que a retrospetiva quádrupla “La Belle Époque” (Celluloid, 2011) tão bem sumariou. Porque este romancista, poeta, ensaísta e compositor falecido em 2001, em qualquer meio e empregando os mais inesperados recursos, mais não fez do que relembrar que nunca se dá por terminada a criação do mundo.

9 de junho de 2012

The Funkees “Dancing Time: The Best of Eastern Nigeria’s Afro Rock Exponents 1973-1977” (Soundway, 2012)

Talvez só os Sly and the Family Stone de “There’s A Riot Going On” ou os Funkadelic de “Maggot Brain” o tenham, em 71, feito tão bem. E também, aí e então, ora no sudeste asiático, ora à porta de casa, era de guerra que se falava. Porque é certo que poucos como os nigerianos Funkees, num período de iminente e eclético pedantismo estético, conseguiram refundar o rock enquanto ideia da música negra e não apenas como símbolo. E, evitando um emprego paliativo dos seus princípios, dessa forma restaurar um orgulho cultural em ruínas. Deu-se porventura o caso do grupo – de origem Igbo, a etnia derrotada no Biafra, em cujo conflito os seus membros participaram animando as tropas secessionistas – ter encontrado num paradigma universal traços específicos da sua identidade. O que fica claro na audição do single “Slippin’ into Darkness/Breakthrough”, de 73, no qual, através de versões africanizadas dos temas dos War e dos Atomic Rooster (em que, respectivamente, se fala de um mergulho na escuridão e da incapacidade de se escapar a uma prisão invisível), se associa a um interposto estado de espírito para denunciar a sua própria condição. Da mesma maneira, em ‘Dancing Time’ ou ‘Ogbu Achara’, recorre ao afrobeat para o tornar num organismo mutante. Tudo isto é patenteado nesta inexacta antologia (a cronologia do subtítulo está equivocada e sai igualmente frustrada a ambição escrita na contracapa de coligir todos os singles da banda) que tem como prato forte a inclusão quase integral de “Point Of No Return”, álbum gravado em Londres, em 75, quando agentes musicais como John Peel viam nos Funkees uns novos Osibisa ou Cymande. Debalde, Jake Sollo sairia em 76 precipitando o seu fim e só Harry Mosco, falecido este ano, manteria uma carreira proeminente. Mas entre 71 e 77 foram seminais.

2 de junho de 2012

Maria Bethânia “Oásis de Bethânia” (Biscoito Fino, 2012)


Cita Pessoa mas é camoniano e mais ainda caymmiano. É um rancoroso épico trágico-marítimo ao serviço de uma estratégia de vingança. A cantora controla as marés. E o deserto inóspito, a terra seca, a vida gretada pelo mundo servem apenas o despertar de um torrencial caudal interior que desponta como as ‘Lágrimas’ do velho sucesso de Orlando Silva que abre o disco, e em que canta “ai, deixa-me chorar para suavizar/ o que não sei dizer, mas sei sentir”, mas cuja razão se nega com ‘Vive’, inédito de Djavan que conclui que “é inútil chorar/ (…) minha vida é sua/ como o marinheiro do mar”. Nesse cenário, previne-se em ‘Calmaria’, de Jota Velloso, que “quem quer singrar os mares/ sem passar por tempestade/ é melhor fincar na areia/ o barco, a vela, a vontade”, e em ‘Fado’, de Roque Ferreira, confirma-se o fatalismo de tanta intemperança com “vais na ventania/ sabendo do naufrágio que o tempo anuncia”. É então que, com os versos de ‘Calúnia’ (tema que acompanhou o rompimento entre Dalva de Oliveira e Herivelto Martins no fim dos anos 40), se revela a causa do pelejo: ao dizer “quiseste ofuscar minha fama/ e até jogar-me na lama/ só porque eu vivo a brilhar”, Bethânia responde aos que contra si se viraram no ano passado, por alturas da polémica em torno do financiamento – ao abrigo da Lei Rouanet – do blog “O Mundo Precisa de Poesia”, no qual auferiria uma remuneração de cerca de 240 mil euros enquanto directora artística. Cancelado o projeto, num transe sacerdotal a que chamou ‘Carta de Amor’, invoca agora Zumbi, Jesus, Maria, José, Fátima, Gandhi, Oxum, Iansã, Xangô ou Lázaro e lê um texto de sua autoria expelindo “eu não provo do teu féu/ eu não piso no teu chão”, “você está tão mirrado que nem o Diabo te ambiciona” ou “eu posso engolir você/ só pra cuspir depois”. A Rainha do Mar transformou-se no Adamastor. Quem tem medo de Maria Bethânia?