A
nominal contração Kollywood refere-se ao local onde se concentra a indústria
cinematográfica – segunda maior da Índia em volume, difusão e rentabilidade – em
língua tâmil, com sede no bairro Kodambakkam, de Chennai, um pólo comercial da
Baía de Bengala. E, como em Bollywood, a sua congénere hindi em Bombaim, também
aqui se criou uma desproporcional e sincrónica recomposição dos códigos de
poder e fantasia metonimicamente associados a Hollywood, com enfática reincidência
no filme musical. Essa predominância narrativa da canção coreografada, ainda
que de esquemática e arquetípica fundação, associada a licenciosas emissões (há
registos de tempos áureos com o lançamento anual de mais de mil títulos no
mercado), estimulou variantes de extático experimentalismo e hiperbólico
funcionalismo e, fundamentalmente, ancorou-se em figuras de elástica
polivalência, com sentido do épico mas minuciosa atenção ao detalhe, exatidão
técnica e coloquialismo estilístico, capazes de acompanhar abrangentes
alegorias destinadas a dilatar os limites da empatia. É num regime de
invariável polarização que editoras como a Finders Keepers – outra de notável
pendor antológico é neste domínio a Bombay Connection – visitam estas
produções, ainda para mais sugerindo uma análise fraturante da obra
audiovisual, exclusivamente focada numa banda sonora em que prevalece o endemicamente
excêntrico mas igualmente a caricatura do ocidente. O compositor Ilaiyaraaja e
a cantora K.S. Chithra ilustram esta bizarra mimese num libertino compêndio extraído
de centenas de colaborações em que, entre 1986 e 1991, temperaram sacarinas
indulgências com um intransigente futurismo, equilibrando arrebatamento
folclórico e esoterismo robótico, numa ação que traz à memória a Yellow Magic
Orchestra e que testemunha esteticamente o ápice e o ocaso tecnológico na
música dos anos 80.
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
30 de junho de 2012
23 de junho de 2012
Candy McKenzie “Lee ‘Scratch’ Perry Presents Candy Mckenzie” (Trojan, 2012)
Falta-lhe
consistência, direção e consciência dos seus próprios expoentes. E tanto
desperta riso quanto compaixão. Pois, embora despreze os elementos necessários
à solução dos problemas que levanta, a verdade é que nele se pressente o
esfumar dos sonhos de uma talentosa inglesa de vinte e poucos anos que, sem o
saber, não ganharia nova oportunidade para os concretizar. E, no entanto, 35
anos após a sua gravação, mesmo tendo este disco permanecido inédito, encontra-se
no seu figurino matéria capaz de revelar importantes factos sobre a mais famosa
arca perdida da história da música: os estúdios Black Ark de Lee Perry.
Nomeadamente, que através desta emissária britânica – e com Ernest Ranglin,
Boris Gardiner e os Third World em estado de graça – experimentou o arauto
jamaicano a sua própria versão do lovers
rock. Ou, confirmando o que a descoberta há seis anos de outro álbum
perdido sugeria (nas sessões de dois zairenses publicadas enquanto “Lee Perry
presents African Roots”), que, em 77, se transferiria para outros projectos a
presença de espírito revelada em “Heart of the Congos” (dos mesmos que agora
regressaram numa colaboração com Sun Araw e M. Geddes Gengras). Aliás, terá
faltado apenas mais tempo e discernimento, e um empenho maior na composição
(são da autoria de McKenzie ou Perry os temas que aqui se acercam de contornos
clássicos e versões do eixo country-soul os dispensáveis), para que, também neste
caso, o produtor atingisse o grau de invenção patenteado em trabalhos com Max
Romeo, Junior Murvin ou Heptones. Mas, à semelhança da estreia dos Congos, este
ensaio de McKenzie foi recusado pela Island e à cantora não garantiu mais do
que uma posição de segunda linha, fazendo trabalhos de estúdio em Londres no
auge das febres acid house e acid jazz e harmonias para Gary Moore, Serge
Gainsbourg ou Elton John. Faleceu em 2003.
16 de junho de 2012
Francis Bebey “African Electronic Music 1975-1982” (Born Bad, 2012)
Vão-se
relativizando os rótulos e, com o passar dos anos, até a provocante
incongruência do camaronês Francis Bebey ganha sentido. Mas nem subordinando o
seu inquisitivo espírito ao apócrifo programa estético da electrónica se
estabelece um credível precedente esquemático para a sua ação. Porque, ao
contrário do que o título desta antologia sugere, não deu à costa mais um
insondável visionário agarrado a uma prancheta de módulos. Quanto muito,
correspondendo à instigação, ensaiam alguns destes temas estratégias cujo
caráter eminentemente lúdico e hedónico evoca peças de Pierre Henry, Holger
Czukay ou Terry Riley, embora nada se lhes assemelhe tanto quanto a versão de
‘Soul Makossa’ que o obscuro Rod Hunter criou num sintetizador Moog. Na
verdade, a excentricidade de Bebey aproxima-o antes das gravações
disponibilizadas por catálogos como Bruton, De Wolfe ou Tele Music para uso
comercial (parece, nessa perspetiva, apropriada a gralha que na contracapa desta
edição apresenta ‘Super Jungle’ enquanto ‘Super Jingle’). Mas o tom de paródico
futurismo das suas vinhetas ao sintetizador e teclados diversos jamais se
esgota numa leitura tão utilitária. Aliás, o descomprometido multiculturalismo,
a estranha acessibilidade, o sardónico universalismo – tão marcantes, sedutores
e imaginativos – que aqui se encontram, não diferem filosoficamente da sua extensa
produção inspirada pelas guitarras de Segovia ou Baden Powell, pela polifonia pigmeia
ou pela música para sanza (idiofone
de lamelas próximo do quissange angolano) que a retrospetiva quádrupla “La Belle Époque” (Celluloid,
2011) tão bem sumariou. Porque este romancista, poeta, ensaísta e compositor
falecido em 2001, em qualquer meio e empregando os mais inesperados recursos, mais
não fez do que relembrar que nunca se dá por terminada a criação do mundo.
9 de junho de 2012
The Funkees “Dancing Time: The Best of Eastern Nigeria’s Afro Rock Exponents 1973-1977” (Soundway, 2012)
Talvez
só os Sly and the Family Stone de “There’s A Riot Going On” ou os Funkadelic de
“Maggot Brain” o tenham, em 71, feito tão bem. E também, aí e então, ora no
sudeste asiático, ora à porta de casa, era de guerra que se falava. Porque é
certo que poucos como os nigerianos Funkees, num período de iminente e eclético
pedantismo estético, conseguiram refundar o rock enquanto ideia da música negra
e não apenas como símbolo. E, evitando um emprego paliativo dos seus princípios,
dessa forma restaurar um orgulho cultural em ruínas. Deu-se
porventura o caso do grupo – de origem Igbo, a etnia derrotada no Biafra, em
cujo conflito os seus membros participaram animando as tropas secessionistas – ter
encontrado num paradigma universal traços específicos da sua identidade. O que fica
claro na audição do single “Slippin’ into
Darkness/Breakthrough”, de 73, no qual, através de versões africanizadas dos
temas dos War e dos Atomic Rooster (em que, respectivamente, se fala de um
mergulho na escuridão e da incapacidade de se escapar a uma prisão invisível),
se associa a um interposto estado de espírito para denunciar a sua própria
condição. Da mesma maneira, em ‘Dancing Time’ ou ‘Ogbu Achara’, recorre ao afrobeat para o tornar num organismo
mutante. Tudo isto é patenteado nesta inexacta antologia (a cronologia do
subtítulo está equivocada e sai igualmente frustrada a ambição escrita na
contracapa de coligir todos os singles
da banda) que tem como prato forte a inclusão quase integral de “Point Of No
Return”, álbum gravado em Londres, em 75, quando agentes musicais como John
Peel viam nos Funkees uns novos Osibisa ou Cymande. Debalde, Jake Sollo sairia em
76 precipitando o seu fim e só Harry Mosco, falecido este ano, manteria uma
carreira proeminente. Mas entre 71 e 77 foram seminais.
2 de junho de 2012
Maria Bethânia “Oásis de Bethânia” (Biscoito Fino, 2012)
Cita
Pessoa mas é camoniano e mais ainda caymmiano. É um rancoroso épico
trágico-marítimo ao serviço de uma estratégia de vingança. A cantora controla
as marés. E o deserto inóspito, a terra seca, a vida gretada pelo mundo servem
apenas o despertar de um torrencial caudal interior que desponta como as
‘Lágrimas’ do velho sucesso de Orlando Silva que abre o disco, e em que canta
“ai, deixa-me chorar para suavizar/ o que não sei dizer, mas sei sentir”, mas
cuja razão se nega com ‘Vive’, inédito de Djavan que conclui que “é inútil
chorar/ (…) minha vida é sua/ como o marinheiro do mar”. Nesse cenário,
previne-se em ‘Calmaria’, de Jota Velloso, que “quem quer singrar os mares/ sem
passar por tempestade/ é melhor fincar na areia/ o barco, a vela, a vontade”, e
em ‘Fado’, de Roque Ferreira, confirma-se o fatalismo de tanta intemperança com
“vais na ventania/ sabendo do naufrágio que o tempo anuncia”. É então que, com
os versos de ‘Calúnia’ (tema que acompanhou o rompimento entre Dalva de
Oliveira e Herivelto Martins no fim dos anos 40), se revela a causa do pelejo:
ao dizer “quiseste ofuscar minha fama/ e até jogar-me na lama/ só porque eu
vivo a brilhar”, Bethânia responde aos que contra si se viraram no ano passado,
por alturas da polémica em torno do financiamento – ao abrigo da Lei Rouanet – do blog “O Mundo Precisa
de Poesia”, no qual auferiria uma remuneração de cerca de 240 mil euros enquanto directora artística. Cancelado
o projeto, num transe sacerdotal a que chamou ‘Carta de Amor’, invoca agora Zumbi,
Jesus, Maria, José, Fátima, Gandhi, Oxum, Iansã, Xangô ou Lázaro e lê um texto
de sua autoria expelindo “eu não provo do teu féu/ eu não piso no teu chão”,
“você está tão mirrado que nem o Diabo te ambiciona” ou “eu posso engolir você/
só pra cuspir depois”. A Rainha do Mar transformou-se no Adamastor. Quem tem
medo de Maria Bethânia?
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