Para
quem não tem lançado assim tantos discos ao vivo quanto isso (isto segundo os
parâmetros do mercado brasileiro, em que o formato se estabeleceu como uma engenhosa
solução para os mais predatórios e sinecuristas instintos da indústria musical)
custa que “Na Carreira” se apresente num escusado modelo compilatório ainda capaz
de gerar equívocos conceptuais: de facto, o que temos aqui não é tanto o
retrato de um (único) concerto quanto uma montagem de registos de mais do que
um (a ficha informativa explica que se trata de uma gravação de Fevereiro de
2012, efetuada na sala Vivo Rio, no Rio de Janeiro, na qual, acrescente-se, Chico
se apresentou 24 noites entre 5 de Janeiro e 12 do mês seguinte), gerando o
procedimento inevitáveis interrupções narrativas e, de tema para tema, inquietantes
divergências na ambiência emanante da plateia, confusas flutuações tímbricas vocais
e instrumentais e correções de pormenor na mistura que se provaram desajeitadas
na definição geral de um quadro sonoro coerente e equilibrado (numa última nota
técnica, pelo menos a edição portuguesa apresenta dois temas – ‘Se Eu Soubesse’
e ‘Sem Você Nº2’ – com a ordem trocada no áudio em relação à determinada por
contracapa e livreto). Não obstante o desacerto, decorre do roteiro de um
espetáculo construído em redor de clássicos mais ou menos obscuros do
cancioneiro de Buarque (‘Teresinha’, ‘O Meu Amor’, ‘Anos Dourados’ ou ‘Todo o
Sentimento’ ao lado das menos unificadoras ‘Ana de Amsterdam’, ‘Baioque’ ou ‘A
Violeira’, compostas para teatro e cinema) a confirmação de que as dez canções de
“Chico”, o álbum de inéditos de 2011, estão ao nível do melhor que o compositor
criou no último quarto de século. A banda, liderada por Luiz Claudio Ramos e pontificada por
Wilson das Neves, Chico Batera ou Jorge Helder, esteve naturalmente competente
e compreensivelmente ufana.
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
29 de setembro de 2012
22 de setembro de 2012
“A Tribute to Caetano Veloso” (Universal, 2012)
Não
é Hal Willner quem quer. E ainda que seja golpe baixo, a pretexto desta
homenagem que até evitou repetir temas gastos, começar por evocar o nome
daquele que há 30 anos vem redefinindo o conceito de autoria em tributos
dirigidos a Nino Rota, Kurt Weill, Walt Disney, Charles Mingus ou Leonard Cohen,
a verdade é que ignorar-lhe por completo o tutorial será infâmia maior. Para
mais num caso de ímpar contumácia, resistente ao ecletismo postiço e ao impulso
globalista desta nova ordem mundial que Paul Ralphes, o expatriado britânico
encarregue da direção artística do projeto, procurou aviar com estratagemático
servilismo, empregando norte-americanos (Beck, Chrissie Hynde e Devendra
Banhart), uma banda inglesa (Magic Numbers), uma fadista (Ana Moura, em
‘Janelas Abertas Nº2’, uma canção tão estruturalmente portuguesa quanto ‘Os
Argonautas’), um espanhol (Miguel Poveda) ou um uruguaio (Jorge Drexler) mais
com mente nos respetivos mercados nacionais, parece, do que na produção de
mais-valia estética. Será uma forma de ver as coisas. Outra dirá que foi Paul
Heck e restante equipa da organização Red Hot a adiantar-se às festividades –
Caetano fez 70 anos em Agosto último – e gerar com um “Red Hot + Rio 2” editado
em Junho de 2011 o justo preito às mais utópicas manifestações do baiano. Seja
como for, trata-se de uma inesgotável herança que soube encontrar o êxtase no
mundano e o superficial no transcendente ou transformar transes pessoais em
experiências profanas de muitos e transas coletivas em experiências sagradas só
suas. Há aqui uma seleção brasileira (Céu, Marcelo Camelo, Tulipa Ruiz, Mariana
Aydar) que o compreendeu e outra (Sérgio Dias, Rodrigo Marante, Qinho, Momo,
Luísa Maita, Seu Jorge) que apenas traz à memória um verso em 75 escrito por
Caetano para a sua irmã Nicinha: “a
vida tem uma dívida com a música perdida”.
15 de setembro de 2012
Chicha Libre “Canibalismo” (Crammed, 2012)
No
“Manifesto Antropófago”, por entre ocasionais referências à lábia lusitana e empregando
uns quantos aforismos de fazer inveja a Millôr Fernandes, concluía exuberante e
telegraficamente em 1928 o modernista brasileiro Oswald de Andrade: “Só a antropofagia
nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo.
Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De
todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the
question”. A alegoria – embora Pero Fernandes, o bispo deglutido pelos índios
caetés em meados do século XVI, se pudesse opor à classificação – aprofundava esquematicamente
o anterior “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” e, de certa forma, preconizava a
instância cultural pós-geográfica e atemporal que teoristas digitais e áugures
da crítica contemporânea, incrédulos face à contínua imaterialidade das suas
previsões, consideram muito dos nossos dias, que nos anos 60 serviu já de lenha
à prática tropicalista de Caetano Veloso e demais baianos e que Olivier Conan e
restantes Chicha Libre, já agora, procuram de uma só vez transferir para os sincretistas
originais da chicha peruana (ameríndios
dos bairros de lata de Lima como Los Destellos, Los Shapis ou Los Mirlos) e
para a sua própria ação (no grupo nova-iorquino militam dois franceses, um
venezuelano, dois norte-americanos e um mexicano). “Canibalismo”, no máximo, é
um ringue de vale-tudo (mas mesmo tudo, “Cavalgada das Valquírias” inclusive)
estilístico que obriga a uma inoportuna reflexão sobre exploração económica,
aculturação ou o absurdo da atual reiteração de conceitos de especificidade
racial, artística ou etnomusicológica; no mínimo, sacia uma infinita sede de
exotismo como um placebo, não possuindo as propriedades do produto genuíno mas operando
milagres nos corpos certos.
8 de setembro de 2012
Le Mystère Jazz de Tombouctou (Kindred Spirits, 2012)
Na crua
exposição nacionalista em que se transformou a música popular do Mali na década
de 70, entre expoentes dados a infinitésima retalhação (observe-se o caótico espólio
de Rail Band e Ambassadeurs du Motel), destacam-se duas séries eminentemente
colecionáveis: a primeira, semeada pelo regime de Modibo Keïta e colhida pelo
de Moussa Traoré, consiste num levantamento de 15 títulos editados pela alemã Bärenreiter-Musicaphon,
entre os quais, sob a designação “Les
Meilleurs Souvenirs de la 1ère Biennale Artistique et Culturelle de la Jeunesse (1970)”, se
agrupou a produção desse ano das orquestras regionais de Ségou, Mopti, Sikasso
e Kayes, da L’Orchestra National ‘A’ e da Rail Band; a segunda, datada de 1977,
publicou-se com o selo Mali Kunkan e, de certa forma, complementa a anterior
registando-lhe dramáticas transformações procedimentais. É desta precisamente
que provém a fascinante Mystère Jazz de Toubouctou, registada neste singular LP
lançado então ao lado de não menos deslumbrantes ensaios de Kéné-Star de
Sikasso, National Badéma, Sidi Yassa de Kayes, Bida de la Capitale, Super Biton
Nationale de Ségou ou Kanaga de Mopti, que, em conjunto, promoviam uma densa
recomposição de códigos tradicionais mandingo, tamaxeque, bobo ou fula (para
quem não compra vinil a preços exorbitantes, adiante-se que só o álbum da trupe
de Mopti está atualmente disponível em CD e que “Mali 70: Electric Mali”
compilou em 2008 um par de temas de cada). No momento em que Tombuctu está a
saque – com a destruição da entrada sagrada na madraça de Sidi Yahya – convém relembrar
este prodigioso manifesto de invenção e tolerância que, daí, por entre
fanfarreados uníssonos de metais e hipnoides ostinato à guitarra elétrica, nos falou um dia de Alá, de mesquitas,
do deserto, da chegada à lua e, naturalmente, de que tudo tem um fim.
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1 de setembro de 2012
Debo Band “Debo Band” (Next Ambiance/Sub Pop, 2012)
Se
a mais fantasiosa construção sobre música cigana do último decénio se pariu em Manhattan
– através dos Gogol Bordello do ucraniano Eugene Hütz – e se, por exemplo, a
ressurreição estética da chicha
peruana muito deve à ação de um francês residente em Brooklyn – Olivier Conan,
da editora Barbès e do grupo Chicha Libre – não será propriamente pela
improvável procedência que causa agora espanto esta esfuziante celebração. Aliás,
Francis Falceto, o organizador da infinitamente exótica Éthiopiques, acabou de produzir,
para a subsidiária Ethiosonic, uma compilação consagrada a música contemporânea etíope (“Noise & Chill Out – Ethiopian Groove
Worldwide”, em que participaram Kronos Quartet, Either/Orchestra ou The Ex) evitando
restringir-se aos códigos postais de Adis Abeba e na qual incluiu precisamente
esta Debo Band, originária de Boston. Mas que os seus 11 elementos liderados
pelo saxofonista Danny Mekonnen – entre os quais se alinham instrumentistas das
mais variadas proveniências e, só para adoçar a história, se distingue um soprador
dedicado ao sousafone, idealizado em finais do século XIX pelo luso-descendente
John Philip Sousa – realizem variações sobre matrizes originais um pouco mais
substantivas do que aquilo que no cinema se designaria como ‘filme de época’
será já motivo de admiração. E, no entanto, é disso mesmo que aqui se trata – disso
e de uma visão pluralista do mundo capaz de rejeitar aquele patrulhamento da
dignidade étnica que ainda controla os quatro cantos da diáspora digital e que,
presumivelmente, em semelhante desiderato, nunca esbarrou com a ‘Grândola, Vila
Morena’ tocada pela Liberation Music Orchestra, Revueltas interpretado pelo
Willem Breuker Kollektief, Satie pela Vienna Art Orchestra ou até, lá está,
Mulatu Astatke a quintessenciar aquela coisa rigorosamente etíope chamada
“Afro-Latin Soul”.
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