Há 20 anos atrás – ainda dava cartas a indústria discográfica
–, o mais unificável na obra de Chico Buarque era, pela Polygram, agrupado numa
espécie de pentagrama subordinado aos signos de “O Amante”, “O Cronista”, “O
Malandro”, “O Trovador” e “O Político”: cinco compilações para o quinquagésimo
aniversário. Volvida uma década, à medida do sexagésimo, a BMG promovia o
lapidar “Francisco” – 12 discos e um par de DVD – e acentuava essa sensação de
já não estarmos bem perante um mero facto da vida. Alerta, a imprensa acolheu majestosas
homilias, sintetizadas num artigo de Tatiana Maia para o “Observatório de
Imprensa”: “Chico Buarque fez 60 anos. Enquanto escrevo, no Rio não se fala em
outra coisa. É capa de revista, assunto no ‘Jornal de Domingo’, tema de festas
em casas noturnas, de palestras, exposições, livros e de caixas de música. Mais
uma vez, Chico é unanimidade. A ‘Folha de S. Paulo’ publicou um teste com
perguntas curiosas; o ‘Jornal do Brasil’ fez um ‘Caderno B’ especial no
domingo. Trazia 60 depoimentos sobre o aniversariante: de Pelé a Fernando
Henrique Cardoso e Fernanda Montenegro. O ‘Globo’ trouxe um especial enorme,
com 18 páginas. Será que ainda há algo de diferente a ser dito sobre Chico?”
Aparentemente havia, sim, como no texto “O que as mulheres veem nele?” E em muitos
mais, com sociólogos lembrando a cronologia do seu engajamento, psicólogos
esquadrinhando-lhe a mente, seguidores das artes de palco discorrendo acerca
das suas peças de teatro, analistas literários examinando a forjicada prosa dos
seus romances, linguistas contando aliterações e anagramas nas suas letras e
quantas esdrúxulas tem ‘Construção’ ou críticos de cinema evocando insólitas
aparições no grande ecrã, de “Quando o Carnaval Chegar”, de Cacá Diegues, a “O
Mandarim”, de Júlio Bressane, e “Água e Sal”, de Teresa Villaverde. O impacto
de tudo isto no homenageado foi pernicioso: refugiou-se em Paris – para escrever,
garantia – recusando entrevistas e indicando à sua assessoria que a todos comunicasse
que “seria cabotino” estar de conivência com tanta veneração. Originais? Nem pensar.
Neste particular, explicar-se-ia ao ‘Folha’: “Os meus discos são relançados de
formas diferentes, embrulhados assim e assado. Há um interesse muito grande por
isso. Se eu lançar um disco novo vou competir comigo mesmo. E devo perder.”
A dias do septuagésimo, o caso não mudou radicalmente de
figura, embora dificilmente consigam os vulturinos produtores do audiovisual rapar
o fundo ao tacho a ponto de propor algo que supere “De Todas as Maneiras” (24
CD numa antologia da Universal editada em 2012) ou a monumental dúzia de DVD
realizada por Roberto de Oliveira entre 2005 e 2006. Além de que, desta feita,
se imagina o tom congratulatório em jornais e revistas a dirigir-se mais rumo
ao trabalho de há dez anos do que exatamente a encaminhar-se para aquele que,
outra vez, procura paz de espírito pelas margens do Sena de forma a compor as
derradeiras linhas do sucessor de “Leite Derramado”. No momento da edição em
língua inglesa de “Budapeste”, professou: “escrevo em busca de alguma coisa: para
entender talvez o passado, talvez eu mesmo”, parafraseando Proust, como daquela
vez em que redigiu uns versos especificamente para Sérgio Godinho (“Vou/ Uma vez mais/ Correr atrás/ De todo o meu tempo
perdido”). Só que o Brasil permanece uma perturbação dos sentidos que se agrava
durante o Campeonato do Mundo de futebol, a “arte” que o quase septuagenário coloca
“acima das outras”, e à qual consagrou uma canção cheia de tabelas entre rimas
internas. Claro que o Mundial não está com a vida fácil, apesar do esforço dos seus
organizadores em submeter esta experiência ao desejo do coletivo: “Juntos num
só ritmo”, é o lema da FIFA, adocicado pela adoção da música da diversidade –
tecno-brega, eletro-forró – que por mais que se perfume com aromas politicamente
corretos tresanda a ambições de soberania cultural. Como a memória é curta, não
estamos assim tão distantes dos “Ninguém Segura Este País” ou “Brasil, Ame-o ou
Deixe-o” da Ditadura Militar. Até Chico será levado a cantarolar a melodia do
mordaz ‘Aqui é o País do Futebol’ que Milton Nascimento e Fernando Brant
dedicaram ao ‘México 70’: “Brasil só é futebol// Nesses noventa minutos/
De emoção e de alegria/ Esqueço a casa e o trabalho/ A vida fica lá fora/
Dinheiro fica lá fora/ A cama fica lá fora/ A família fica lá fora/ A vida fica
lá fora/ O salário fica lá fora/ E tudo fica lá fora.” Por isso, Chico fica lá
na Île Saint-Louis assistindo aos jogos pela televisão. Em 1998, afirmou ao
“Globo”: “Por causa desse uso político [do futebol] feito durante a ditadura, fiquei
um pouco avesso a essas patriotadas. É uma coisa que ficou impregnada, (…) essa
propaganda toda que se faz em volta: ‘Brasileiro gosta de futebol, brasileiro
gosta de mulher.’ Como se os outros povos não gostassem. Fica muito ‘Brasil,
Brasil, Brasil’, que é meio desagradável e lembra um pouco esse período.”
De facto, os tempos não estão
para unanimidades. Se não estão para o futebol ou para Dorival Caymmi, que teria
completado timidamente o centenário em abril passado, menos ainda estão para
Chico. Veio há meses a lume uma prova da sua pontualíssima delinquência moral,
quando, na polémica em redor das biografias não-autorizadas, despoletada pela
iniciativa que pedia a declaração de inconstitucionalidade dos artigos do
Código Civil que condicionam a publicação de biografias ao aval dos biografados
(ou seus herdeiros), Chico, o homem que em 1980 conduziu Vítor Gaspar à Festa do
Avante, se situou junto dos que ignoram a liberdade de expressão, ajuizando que
o interesse privado prevalece ao público. Nada de inédito: em 1975 travou no prelo
um livro do semanário “O Pasquim” por achar que depoimentos seus com cinco anos
estavam “desatualizados”. É o resultado de décadas de sambas como ‘Segredo’, de
Herivelto Martins e Marino Pinto: “Teu mal é comentar o passado/ Ninguém
precisa saber o que houve entre nós dois/ O peixe é pro fundo das redes/
Segredo é pra quatro paredes”. Entre 2011 e 2012 foi um dano colateral à ação da
sua irmã, Ana de Hollanda, no Ministério da Cultura, quando esta prosseguia políticas
elitistas em questões de direito autoral. E foi, por essa altura, acusado de
influenciar a alocação de verbas, ao abrigo da Lei Rouanet, para um projeto de
Thaís Gulin, sua namorada. Chico deve ter esquecido a frase com que Sérgio
Buarque de Hollanda, seu pai, abriu o quinto capítulo de “Raízes do Brasil”: “O
Estado não é uma ampliação do círculo familiar”. Já em 2010 havia corrido uma
petição para que devolvesse o Prémio Jabuti de Literatura por “Leite
Derramado”: tal como no caso de “Budapeste” recebeu a distinção de Livro do Ano
quando, na etapa de votação preliminar, não tinha sequer encabeçado a categoria
em que concorreu. Ou seja, a muita distância do aforismo dos anos 60 – “Chico é
a única unanimidade nacional” –, andou-se mais próximo dessoutro julgamento que
proferiu Millôr Fernandes: “Desconfio de todo o idealista que lucra com o seu
ideal.”
A controvérsia vem de longe. Num dia de 1970, terminado o
exílio por Itália, ouviu-se: “Agora falando sério/ Eu queria não cantar/ A
cantiga bonita/ Que se acredita/ Que o mal espanta.” E Mais: “Dou um chute no
lirismo/ Um pega no cachorro/ E um tiro no sabiá// Pra não ver banda passar.” Ao
quarto LP, Chico, com muita vaidade e pouca autoestima, respondia com ‘Agora
Falando Sério’ àqueles que implicavam com o feitiço do tempo que se apoderava
dos seus sambas que venciam festivais, nostálgicos e reacionários,
impossivelmente compatíveis com a terrível apreciação de Clarice Lispector
(“Chico tem um ar de bom rapaz, esses que todas as mães com filhas casadoiras
gostariam de ter como genro”) que o tornava cúmplice até das famílias dos carrascos.
Em “Verdade Tropical”, Caetano Veloso advertiu: “Claro que havia uma
agressividade necessária contra o culto unânime a Chico em nossas atitudes.” De
repente, ficavam para trás ‘Tem Mais Samba’, ‘Pedro Pedreiro’, ‘A Banda’,
‘Carolina’, ‘Olê, Olá’ ou ‘Com Açúcar, Com Afeto’, e Chico deixou-as de vez. Logo
chegariam ‘Rosa dos Ventos’, ‘Deus Lhe Pague’, ‘Cotidiano’, ‘Construção’,
‘Valsinha’, ‘Olha Maria’, ‘Samba de Orly’ ou, no contexto da peça “Calabar”, o
‘Fado Tropical’ do irónico refrão “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal/ Ainda
vai tornar-se um imenso Portugal” e do mais explícito “Todos nós herdamos no
sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo/ Mesmo quando as minhas mãos estão
ocupadas em torturar, esganar, trucidar/ Meu coração fecha os olhos e
sinceramente chora.” E vieram ‘O Que Será’, ‘Meu Caro Amigo’, ‘Cálice’, ‘Pedaço
de Mim’, ‘Tanto Mar’, ‘Apesar de Você’, os “Saltimbancos”, a “Ópera do
Malandro”, e os temas da definitiva emancipação dessa personalidade interior
feminina de que Jung falava (mas que por vezes recordava a Myrna, de Nelson Rodrigues),
mais a piscadela de olho ao MPLA em ‘Morena de Angola’ e a aproximação a Cuba, até
que se arruinou um regime e se entra nos anos 80 sem se vislumbrar um
brasileiro ou um português que não tivesse em si um pedacinho de Chico.
Seguiram-se sambas, boleros e valsas de teatralidade entranhada (“O Grande
Circo Místico”, “O Corsário do Rei”, “Dança da Meia-Lua”, sempre com Edu Lobo)
e um dos mais lúcidos e lúdicos álbuns da história da MPB: o homónimo de 1984,
contemporâneo às “Diretas Já”. E tanto mais, enfim.
Chico parece ter passado a vida a desfazer equívocos
revelando uma cínica indiferença pelo alcance das suas ideias poéticas: “Eu
gostava de falar mal do governo quando os jornais não o faziam”, dizia à
Rolling Stone; “Acho uma contradição isso de dizer que eu expresso muito bem o
sentimento feminino, pois, para mim, as mulheres são um enorme mistério”,
confessava no DVD “À Flor da Pele”; “Eu não proponho mudanças. Tenho até uma
certa antipatia pelo trabalho que ao mesmo tempo representa o problema e propõe
a solução”, jurava à Veja. Pode ter cantado melhor ao veicular o que não foi:
pobre, crente, mulher. E não se sabe se o mundo continuará preso aos seus
relatos de generais e coronéis, de generalidades coronárias, às suas crónicas
de género. Chico é, talvez, o grande historiador dos nossos desenganos. Que
nunca nos seja retirado o direito a entendê-lo mal.
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