14 de junho de 2014

Chico Buarque: 70 anos





Há 20 anos atrás – ainda dava cartas a indústria discográfica –, o mais unificável na obra de Chico Buarque era, pela Polygram, agrupado numa espécie de pentagrama subordinado aos signos de “O Amante”, “O Cronista”, “O Malandro”, “O Trovador” e “O Político”: cinco compilações para o quinquagésimo aniversário. Volvida uma década, à medida do sexagésimo, a BMG promovia o lapidar “Francisco” – 12 discos e um par de DVD – e acentuava essa sensação de já não estarmos bem perante um mero facto da vida. Alerta, a imprensa acolheu majestosas homilias, sintetizadas num artigo de Tatiana Maia para o “Observatório de Imprensa”: “Chico Buarque fez 60 anos. Enquanto escrevo, no Rio não se fala em outra coisa. É capa de revista, assunto no ‘Jornal de Domingo’, tema de festas em casas noturnas, de palestras, exposições, livros e de caixas de música. Mais uma vez, Chico é unanimidade. A ‘Folha de S. Paulo’ publicou um teste com perguntas curiosas; o ‘Jornal do Brasil’ fez um ‘Caderno B’ especial no domingo. Trazia 60 depoimentos sobre o aniversariante: de Pelé a Fernando Henrique Cardoso e Fernanda Montenegro. O ‘Globo’ trouxe um especial enorme, com 18 páginas. Será que ainda há algo de diferente a ser dito sobre Chico?” Aparentemente havia, sim, como no texto “O que as mulheres veem nele?” E em muitos mais, com sociólogos lembrando a cronologia do seu engajamento, psicólogos esquadrinhando-lhe a mente, seguidores das artes de palco discorrendo acerca das suas peças de teatro, analistas literários examinando a forjicada prosa dos seus romances, linguistas contando aliterações e anagramas nas suas letras e quantas esdrúxulas tem ‘Construção’ ou críticos de cinema evocando insólitas aparições no grande ecrã, de “Quando o Carnaval Chegar”, de Cacá Diegues, a “O Mandarim”, de Júlio Bressane, e “Água e Sal”, de Teresa Villaverde. O impacto de tudo isto no homenageado foi pernicioso: refugiou-se em Paris – para escrever, garantia – recusando entrevistas e indicando à sua assessoria que a todos comunicasse que “seria cabotino” estar de conivência com tanta veneração. Originais? Nem pensar. Neste particular, explicar-se-ia ao ‘Folha’: “Os meus discos são relançados de formas diferentes, embrulhados assim e assado. Há um interesse muito grande por isso. Se eu lançar um disco novo vou competir comigo mesmo. E devo perder.”


A dias do septuagésimo, o caso não mudou radicalmente de figura, embora dificilmente consigam os vulturinos produtores do audiovisual rapar o fundo ao tacho a ponto de propor algo que supere “De Todas as Maneiras” (24 CD numa antologia da Universal editada em 2012) ou a monumental dúzia de DVD realizada por Roberto de Oliveira entre 2005 e 2006. Além de que, desta feita, se imagina o tom congratulatório em jornais e revistas a dirigir-se mais rumo ao trabalho de há dez anos do que exatamente a encaminhar-se para aquele que, outra vez, procura paz de espírito pelas margens do Sena de forma a compor as derradeiras linhas do sucessor de “Leite Derramado”. No momento da edição em língua inglesa de “Budapeste”, professou: “escrevo em busca de alguma coisa: para entender talvez o passado, talvez eu mesmo”, parafraseando Proust, como daquela vez em que redigiu uns versos especificamente para Sérgio Godinho (“Vou/ Uma vez mais/ Correr atrás/ De todo o meu tempo perdido”). Só que o Brasil permanece uma perturbação dos sentidos que se agrava durante o Campeonato do Mundo de futebol, a “arte” que o quase septuagenário coloca “acima das outras”, e à qual consagrou uma canção cheia de tabelas entre rimas internas. Claro que o Mundial não está com a vida fácil, apesar do esforço dos seus organizadores em submeter esta experiência ao desejo do coletivo: “Juntos num só ritmo”, é o lema da FIFA, adocicado pela adoção da música da diversidade – tecno-brega, eletro-forró – que por mais que se perfume com aromas politicamente corretos tresanda a ambições de soberania cultural. Como a memória é curta, não estamos assim tão distantes dos “Ninguém Segura Este País” ou “Brasil, Ame-o ou Deixe-o” da Ditadura Militar. Até Chico será levado a cantarolar a melodia do mordaz ‘Aqui é o País do Futebol’ que Milton Nascimento e Fernando Brant dedicaram ao ‘México 70’: “Brasil só é futebol// Nesses noventa minutos/ De emoção e de alegria/ Esqueço a casa e o trabalho/ A vida fica lá fora/ Dinheiro fica lá fora/ A cama fica lá fora/ A família fica lá fora/ A vida fica lá fora/ O salário fica lá fora/ E tudo fica lá fora.” Por isso, Chico fica lá na Île Saint-Louis assistindo aos jogos pela televisão. Em 1998, afirmou ao “Globo”: “Por causa desse uso político [do futebol] feito durante a ditadura, fiquei um pouco avesso a essas patriotadas. É uma coisa que ficou impregnada, (…) essa propaganda toda que se faz em volta: ‘Brasileiro gosta de futebol, brasileiro gosta de mulher.’ Como se os outros povos não gostassem. Fica muito ‘Brasil, Brasil, Brasil’, que é meio desagradável e lembra um pouco esse período.”

De facto, os tempos não estão para unanimidades. Se não estão para o futebol ou para Dorival Caymmi, que teria completado timidamente o centenário em abril passado, menos ainda estão para Chico. Veio há meses a lume uma prova da sua pontualíssima delinquência moral, quando, na polémica em redor das biografias não-autorizadas, despoletada pela iniciativa que pedia a declaração de inconstitucionalidade dos artigos do Código Civil que condicionam a publicação de biografias ao aval dos biografados (ou seus herdeiros), Chico, o homem que em 1980 conduziu Vítor Gaspar à Festa do Avante, se situou junto dos que ignoram a liberdade de expressão, ajuizando que o interesse privado prevalece ao público. Nada de inédito: em 1975 travou no prelo um livro do semanário “O Pasquim” por achar que depoimentos seus com cinco anos estavam “desatualizados”. É o resultado de décadas de sambas como ‘Segredo’, de Herivelto Martins e Marino Pinto: “Teu mal é comentar o passado/ Ninguém precisa saber o que houve entre nós dois/ O peixe é pro fundo das redes/ Segredo é pra quatro paredes”. Entre 2011 e 2012 foi um dano colateral à ação da sua irmã, Ana de Hollanda, no Ministério da Cultura, quando esta prosseguia políticas elitistas em questões de direito autoral. E foi, por essa altura, acusado de influenciar a alocação de verbas, ao abrigo da Lei Rouanet, para um projeto de Thaís Gulin, sua namorada. Chico deve ter esquecido a frase com que Sérgio Buarque de Hollanda, seu pai, abriu o quinto capítulo de “Raízes do Brasil”: “O Estado não é uma ampliação do círculo familiar”. Já em 2010 havia corrido uma petição para que devolvesse o Prémio Jabuti de Literatura por “Leite Derramado”: tal como no caso de “Budapeste” recebeu a distinção de Livro do Ano quando, na etapa de votação preliminar, não tinha sequer encabeçado a categoria em que concorreu. Ou seja, a muita distância do aforismo dos anos 60 – “Chico é a única unanimidade nacional” –, andou-se mais próximo dessoutro julgamento que proferiu Millôr Fernandes: “Desconfio de todo o idealista que lucra com o seu ideal.”

A controvérsia vem de longe. Num dia de 1970, terminado o exílio por Itália, ouviu-se: “Agora falando sério/ Eu queria não cantar/ A cantiga bonita/ Que se acredita/ Que o mal espanta.” E Mais: “Dou um chute no lirismo/ Um pega no cachorro/ E um tiro no sabiá// Pra não ver banda passar.” Ao quarto LP, Chico, com muita vaidade e pouca autoestima, respondia com ‘Agora Falando Sério’ àqueles que implicavam com o feitiço do tempo que se apoderava dos seus sambas que venciam festivais, nostálgicos e reacionários, impossivelmente compatíveis com a terrível apreciação de Clarice Lispector (“Chico tem um ar de bom rapaz, esses que todas as mães com filhas casadoiras gostariam de ter como genro”) que o tornava cúmplice até das famílias dos carrascos. Em “Verdade Tropical”, Caetano Veloso advertiu: “Claro que havia uma agressividade necessária contra o culto unânime a Chico em nossas atitudes.” De repente, ficavam para trás ‘Tem Mais Samba’, ‘Pedro Pedreiro’, ‘A Banda’, ‘Carolina’, ‘Olê, Olá’ ou ‘Com Açúcar, Com Afeto’, e Chico deixou-as de vez. Logo chegariam ‘Rosa dos Ventos’, ‘Deus Lhe Pague’, ‘Cotidiano’, ‘Construção’, ‘Valsinha’, ‘Olha Maria’, ‘Samba de Orly’ ou, no contexto da peça “Calabar”, o ‘Fado Tropical’ do irónico refrão “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal/ Ainda vai tornar-se um imenso Portugal” e do mais explícito “Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo/ Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar/ Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora.” E vieram ‘O Que Será’, ‘Meu Caro Amigo’, ‘Cálice’, ‘Pedaço de Mim’, ‘Tanto Mar’, ‘Apesar de Você’, os “Saltimbancos”, a “Ópera do Malandro”, e os temas da definitiva emancipação dessa personalidade interior feminina de que Jung falava (mas que por vezes recordava a Myrna, de Nelson Rodrigues), mais a piscadela de olho ao MPLA em ‘Morena de Angola’ e a aproximação a Cuba, até que se arruinou um regime e se entra nos anos 80 sem se vislumbrar um brasileiro ou um português que não tivesse em si um pedacinho de Chico. Seguiram-se sambas, boleros e valsas de teatralidade entranhada (“O Grande Circo Místico”, “O Corsário do Rei”, “Dança da Meia-Lua”, sempre com Edu Lobo) e um dos mais lúcidos e lúdicos álbuns da história da MPB: o homónimo de 1984, contemporâneo às “Diretas Já”. E tanto mais, enfim.

Chico parece ter passado a vida a desfazer equívocos revelando uma cínica indiferença pelo alcance das suas ideias poéticas: “Eu gostava de falar mal do governo quando os jornais não o faziam”, dizia à Rolling Stone; “Acho uma contradição isso de dizer que eu expresso muito bem o sentimento feminino, pois, para mim, as mulheres são um enorme mistério”, confessava no DVD “À Flor da Pele”; “Eu não proponho mudanças. Tenho até uma certa antipatia pelo trabalho que ao mesmo tempo representa o problema e propõe a solução”, jurava à Veja. Pode ter cantado melhor ao veicular o que não foi: pobre, crente, mulher. E não se sabe se o mundo continuará preso aos seus relatos de generais e coronéis, de generalidades coronárias, às suas crónicas de género. Chico é, talvez, o grande historiador dos nossos desenganos. Que nunca nos seja retirado o direito a entendê-lo mal.

Sem comentários:

Enviar um comentário