7 de junho de 2014

Dave Douglas & Uri Caine “Present Joys” (Greenleaf, 2014) & Dave Douglas, Chet Doxas, Steve Swallow, Jim Doxas “Riverside” (Greenleaf, 2014)



Numa sintética exposição dos ensinamentos da moral cristã, em duas epístolas se dirigiu o apóstolo Paulo às Igrejas de Eféso e Colossos. Por ora, ressalve-se o caráter admoestante de um par de passagens em que exortava à recitação de “salmos, hinos e cânticos” e aconselhava todo o crente a renunciar aos “prazeres da carne”, “cantando e celebrando de todo o coração os louvores do Senhor”. O texto em grego, promulgando a primazia da voz humana no ato de exaltação, recorria à seguinte metáfora: “ponteando as cordas do coração”, como se no tórax albergássemos uma harpa. Já no século XIX, o hinário “A Harpa Sagrada”, precisamente nessa figura de retórica inspirado, teve um tremendo impacto nas mais conservadoras congregações norte-americanas ao promover uma ardente adesão à doutrina do Novo Testamento. Publicado em 1844, cedo se reputou como o segundo livro mais popular nos Estados-Unidos, a seguir à Bíblia. Até hoje, com predominância no sul do país, as suas leituras permanecem um acontecimento social, mais participativo do que performativo, envolvendo dezenas de devotos. Muitas das primeiras gravações desta tradição, nos anos 20 do século passado, possuem uma reconfortante intimidade familiar, praticamente arcaica quando comparada com a exuberância desse ‘muro de vozes’ tão mais em voga nos dias que correm, apto a gerar uma música em que não é fácil penetrar mas face à qual só em vão se oporá resistência. Notável demonstração disso mesmo acha-se em “I Belong to This Band: Eighty Five Years of Sacred Harp Recordings”, uma compilação editada pela Dust-to-Digital.

Dificilmente se dirá que o jazz comunga desta particular deontologia. Mas quem tenha prestado atenção ao que Alan Lomax escreveu sobre o assunto estará mais perto de compreender a sua capacidade de sedução. Em 1959, o folclorista relatou assim os procedimentos da Associação Unitária de Harpa Sagrada de Fyffe, no Alabama: “São centenas de agricultores, advogados de província e comerciantes, acompanhados pelas respetivas mulheres e filhos, e, no entanto, ao cantar, não há aqui vedetas; o ambiente é completamente democrático. Eis um estilo coral feito à medida de uma nação de individualistas.” De facto, trata-se de um veículo de veneração ou, até, de um modo de estreitar vínculos comunitários, mas, como tanto do que teve origem na Reforma Protestante, por vezes parece ser mais acerca da liberdade de cada um. Talvez por isso, que não apenas pela expressividade das suas melodias, tenha igualmente Dave Douglas encontrado razões para abordar, em “Present Joys”, cinco temas de Harpa Sagrada, acrescentando-lhes um punhado de inéditos nesse espírito imbuídos. Socorrendo-se de um polímate da estirpe de Caine, surpreende pela redução: da tumultuosa polifonia a sensíveis cânones a dois. Mas, por outro lado, tão dogmático material torna-se às mãos dos improvisadores acentuadamente sincopado e cromático, distanciando-se da sua existência devocional e aproximando-se, ocasionalmente por intermédio de glosas, do mais primitivo evangelho do jazz, de êxtases profanos e silêncios solenes. 

Supõe-se que nada tenha a ver com isto “Riverside”, uma homenagem ao mais caracteristicamente idiomático em Jimmy Giuffre concebida essencialmente a partir de originais de Douglas e Chet Doxas (notem-se as credenciais de Swallow neste contexto), mas basta ouvi-lo para se identificar uma interseção de bucolismo e cosmopolitismo em tudo semelhante a essoutra de que se falava, obedecendo a uma arejada gestão do espaço e à contínua ilustração de um fascinante complexo de arquetípicas ações em que se harmoniza de forma panorâmica e se imprimem ritmos de atrativa lassidão. Lembrando a escritura citada, o trompetista está num e noutro disco de todo o coração.

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