Sobre a sua “Clocks and Clouds”, afirmou Ligeti: “É formada
por um conjunto de processos através do qual os ‘relógios’ se dissolvem em
‘nuvens’ e as ‘nuvens’ se materializam em ‘relógios’”, numa referência direta a
um ensaio de Popper em que se balizava a escala da indeterminação a partir do que era
eminentemente determinável (um relógio, com peças e mecanismos de inequívoca
compreensão) e do que não se podia determinar (uma nuvem, cujo significado se apreende
pelo exame de todo um sistema e não tanto pelo estudo em separado dos seus
componentes). É natural que o conceito atraia improvisadores, cuja ambição, a
um nível cultural, é precisamente a de unir aquilo que tem tendência para a
dispersão ou aproximar o que subsiste à margem do dogma. Por isso depende da
documentação, pese embora seja um risco coreografar-se em demasia a
espontaneidade. Nessa perspetiva, este CD, eventualmente inspirado no que acima
se referiu, admite sete indexações – mais breve a que ronda os 2 minutos
(‘Hunting Song’, tangível como algo feito de materiais encontrados no chão de
uma floresta) – mas talvez fosse preferível ficar-se por uma, apenas, que lhe
perfizesse a duração integral e que se tornasse mais sensível a tempos diferentes
de reação. Até porque, acerca de ‘Compression Test’ (com 18 minutos, o mais
longo dos temas), por exemplo, declarar-se-ia, à partida, que trataria da
manifestação de uma incoerência semântica não fosse a sua escuta confirmar o
caráter extorsionário do modo em que conclui. Isto é, estranhar-se-á falar-se
de compressão na mais dilatado exercício aqui presente, mas, também, é verdade
que o álbum não afasta a ideia de que põe à vista o negativo de outra coisa, inversa,
a que veda o acesso. Não obstante tal perceção, ou, quiçá, por essa razão, revela
uma enorme maturidade. Luís Vicente (trompete), no mais retórico dos estilos,
desenha azuladas interrogações no ar e, noutros, com pontos de contacto com
práticas coetâneas, garatuja-o com avermelhados gases de mau-génio, mantendo-se
em cada instância capaz de atribuir direção ao que dá mostras de se realizar
sem motivo aparente. Com surdina, é dúctil o sopro que o anima, mas a estabilidade
tonal é contingencial ao mais axiomático nas suas emissões. Marco Franco
(bateria) é um percussionista que evita a mecânica, ciente de que, entre
aqueles de que poderá lançar mão, a repetição é o recurso menos interessante ao
seu dispor, escolhendo colorir, comentar com inesperadas pronúncias, tomar
posse do corpo do coletivo com uma seriedade praticamente satírica. Rodrigo
Pinheiro (piano) move-se no palco com a imposição de um encenador, ora seguindo
o guião, ora dele se distanciando de forma imprevisível, ora discursivo, ora
dedutivo, alimentando-se dos papéis a seu lado desempenhados ou só pelos pensamentos
que o habitam. Em Hernâni Faustino (contrabaixo) está patente a capacidade de
tudo ligar, quando toca de maneira rigorosamente ortográfica, ou, ao invés, separar,
ao abdicar de qualquer formalismo. Como relógios e nuvens, dir-se-ia.
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