21 de junho de 2014

Luís Vicente, Rodrigo Pinheiro, Hernâni Faustino, Marco Franco “Clocks and Clouds” (FMR, 2014)




Sobre a sua “Clocks and Clouds”, afirmou Ligeti: “É formada por um conjunto de processos através do qual os ‘relógios’ se dissolvem em ‘nuvens’ e as ‘nuvens’ se materializam em ‘relógios’”, numa referência direta a um ensaio de Popper em que se balizava a escala da indeterminação a partir do que era eminentemente determinável (um relógio, com peças e mecanismos de inequívoca compreensão) e do que não se podia determinar (uma nuvem, cujo significado se apreende pelo exame de todo um sistema e não tanto pelo estudo em separado dos seus componentes). É natural que o conceito atraia improvisadores, cuja ambição, a um nível cultural, é precisamente a de unir aquilo que tem tendência para a dispersão ou aproximar o que subsiste à margem do dogma. Por isso depende da documentação, pese embora seja um risco coreografar-se em demasia a espontaneidade. Nessa perspetiva, este CD, eventualmente inspirado no que acima se referiu, admite sete indexações – mais breve a que ronda os 2 minutos (‘Hunting Song’, tangível como algo feito de materiais encontrados no chão de uma floresta) – mas talvez fosse preferível ficar-se por uma, apenas, que lhe perfizesse a duração integral e que se tornasse mais sensível a tempos diferentes de reação. Até porque, acerca de ‘Compression Test’ (com 18 minutos, o mais longo dos temas), por exemplo, declarar-se-ia, à partida, que trataria da manifestação de uma incoerência semântica não fosse a sua escuta confirmar o caráter extorsionário do modo em que conclui. Isto é, estranhar-se-á falar-se de compressão na mais dilatado exercício aqui presente, mas, também, é verdade que o álbum não afasta a ideia de que põe à vista o negativo de outra coisa, inversa, a que veda o acesso. Não obstante tal perceção, ou, quiçá, por essa razão, revela uma enorme maturidade. Luís Vicente (trompete), no mais retórico dos estilos, desenha azuladas interrogações no ar e, noutros, com pontos de contacto com práticas coetâneas, garatuja-o com avermelhados gases de mau-génio, mantendo-se em cada instância capaz de atribuir direção ao que dá mostras de se realizar sem motivo aparente. Com surdina, é dúctil o sopro que o anima, mas a estabilidade tonal é contingencial ao mais axiomático nas suas emissões. Marco Franco (bateria) é um percussionista que evita a mecânica, ciente de que, entre aqueles de que poderá lançar mão, a repetição é o recurso menos interessante ao seu dispor, escolhendo colorir, comentar com inesperadas pronúncias, tomar posse do corpo do coletivo com uma seriedade praticamente satírica. Rodrigo Pinheiro (piano) move-se no palco com a imposição de um encenador, ora seguindo o guião, ora dele se distanciando de forma imprevisível, ora discursivo, ora dedutivo, alimentando-se dos papéis a seu lado desempenhados ou só pelos pensamentos que o habitam. Em Hernâni Faustino (contrabaixo) está patente a capacidade de tudo ligar, quando toca de maneira rigorosamente ortográfica, ou, ao invés, separar, ao abdicar de qualquer formalismo. Como relógios e nuvens, dir-se-ia.

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