29 de novembro de 2014

Jason Moran “All Rise: A Joyful Elegy for Fats Waller” (Blue Note, 2014)



Em fevereiro de 2013, em entrevista ao Expresso, Jason Moran dizia que “no jazz, em termos formais, uma dimensão fundamental é a que permite a revelação de estilistas. As versões (…) podem dizer-nos mais sobre o virtuosismo de quem adapta do que de quem compôs.” É uma premissa indispensável para se apreciar esta sua homenagem a Thomas “Fats” Waller (1904-1943), feita em colaboração com Meshell Ndegeocello, mas, também, quanto baste para que se compreenda que, aqui, nem sempre se vislumbra inteiramente à imagem de quem – ou à luz dos valores de que época – é que o material está a ser recriado. De Waller, que se fosse um texto estaria constantemente a negrito, cá estão algumas táticas de choque, um descuido algo calculado, os dramáticos gestos, aquela indecorosa e incondicional entrega à hipérbole. Mas falta, por exemplo, o sentido de aventura – na verdade, era quase um desporto – que impunha às suas próprias rotinas. Era divertido, mas herético. Gostava de apanhar de surpresa os temas de que era autor, enquanto, de sobrancelha arqueada, ia interrogando continuamente uma audiência que parecia antecipar todos os seus movimentos: “Vocês têm a certeza que já conhecem esta?”, perguntava, trocando as voltas a ‘Ain’t Misbehavin’’, ‘Honeysuckle Rose’ ou ‘Jitterbug Waltz’. Comportava-se como se fosse o criador de uma música imoral, mas não era desprovido de vida interior nem apenas um talentoso populista. Acima de tudo, à custa de tanta audácia, invenção e malícia, cultivou um estilo quase autónomo. Moran sabe que a paródia pode ser um tipo de extrema-unção. Mas não faz mais pelos vivos um discurso que em tudo toca e a nada efetivamente adere.  

Hailu Mergia and The Walias “Tche Belew” (Awesome Tapes From Africa, 2014)



Complicavam-se as coisas em disputas territoriais com a Eritreia, mas também é verdade que pela Adis Abeba de finais dos anos 90 se tornava a respirar: reabriam-se fronteiras, relaxava-se o controlo alfandegário, recebiam-se estrangeiros e expulsava-se da memória a repressão política no regime dos Derg, a repreensão nas artes, o recolher obrigatório. Daí, então, escrevia Francis Falceto um capítulo a transbordar de otimismo para o antológico “Rough Guide: Africa, Europe and the Middle East” em que falava da singularidade da música etíope por meio de uma metáfora: “A sua característica mais significativa é recorrer a uma escala pentatónica com intervalos irregulares: é como atirar uma pedra para um poço para ouvir o som que faz ao cair na água e, depois, não haver barulho nenhum.” Podia ter dito que é como tentar dançar a valsa depois de mascar qat que não seria mais críptico. Por isso, a sua coleção, a Éthiopiques, veio facilitar a vida a muita gente. E ao 13º volume, em 2003, punha em pratos limpos uma importante questão: ‘Musicawi Silt’, o magnético tema que, desde 1998, promovia um novo esperanto através de versões de Daktaris, Antibalas ou Secret Chiefs 3, era um original da Walias Band, extraído a “Tche Belew”, um LP de 1977. Mas foi preciso outra década para se descobrir que Hailu Mergia, líder do conjunto, estava há muito longe de casa, a trabalhar como taxista na cidade norte-americana de Washington. Brian Shimkovitz, do blog e editora Awesome Tapes From Africa, contou a sua história quando, em 2013, lhe reeditou “Shemonmuanaye”. E agora acrescenta-lhe um capítulo crucial: este manifesto de felicidade e fantasia em que participa Mulatu Astatke, um clássico em qualquer escala pronto a devolver a luz à noite dos tempos.

“Tropicália ou Panis et Circensis” (Soul Jazz, 2014)



Nova reedição para um manifesto em que até os defeitos são congeniais. Ou seja, ainda não foi desta que se endireitou o que em 1968 nasceu torto: os metais em ‘Miserere Nobis’ mantêm-se desafinados, o final de ‘Batmacumba’ continua colado a cuspo, a métrica de ‘Mamãe Coragem’ insiste em engasgar Gal Costa, etc. Por isso nem é grave que, ali, no lado direito da fac-similada capa, naquela tira informativa a que os japoneses chamam obi, seja o alinhamento do primeiro LP de Gilberto Gil – que a Soul Jazz relançou em 2013 – que se reproduz, e não propriamente o deste disco. Afinal, trata-se do mesmo objeto que citava de modo impreciso o famoso metonímico de Juvenal: aquele que se sintetiza por panem et circenses e que se conserva como uma definitiva caracterização das manobras de diversão a que recorrem as classes dirigentes de todas as eras. Em “Verdade Tropical”, Caetano Veloso explica como “em meio à iconoclastia tropicalista, a reverência às letras clássicas era a última das exigências a ocorrer a alguém”. Até porque, lá está, relembrava este compêndio de imperfeições em que se provocava através do pasticho e da paródia, por exemplo, sem jamais procurar a proteção da mimese. O interesse, se é que é possível generalizá-lo, seria, antes, alcançar de um só golpe a tragédia e a comédia que se acha em tudo o que se relaciona com o humano. Aqui, toda a letra é polissémica, toda a música polimórfica. É a mais celebrada alegoria para a história da música popular brasileira e sua receção: tem poemas de Capinan e Torquato Neto, vozes e composições de Caetano, Gil, Nara, Tom Zé, Gal, Rita Lee e os Mutantes e arranjos de Duprat. Disputa o retrocesso civilizacional, e o seu inverso também.

22 de novembro de 2014

Beethoven: Piano Concerto Nº 5; Sonata Op. 111 (Decca, 2014)




Nelson Freire (p), Gewandhausorchester, Riccardo Chailly (d)


Interessante exercício de contrastes, este, que nos propõem Freire e Chailly. Dir-se-ia, até, que a decisão de colocar peças tão distintas junto uma à outra quererá, por si só, dizer qualquer coisa. Talvez, quiçá, que a anunciada integral dos concertos para piano de Beethoven, agora iniciada, não ficará excessivamente sujeita aos compromissos da programação. Isto é, que a produção de Beethoven se manterá como um campo de ação eminentemente subjetivo. É o que se adivinha em depoimentos de Freire reproduzidos no livreto do CD: “O desenvolvimento nesta música é extraordinário: nenhum outro compositor percorreu um caminho criativo tão longo” ou “tudo depende da maneira em como nos sentimos. Criamos a música espontaneamente”. Entende-se melhor a última declaração no que diz respeito à peça para solista. Afinal, cada vez mais se ouve a “Sonata para Piano Nº 32 em Dó menor, Op. 111” como se de uma improvisação de um pianista de jazz particularmente enciclopédico se tratasse. Basta, por exemplo, observar o modo como Uchida ou Denk lhe descrevem as passagens mais incongruentes. Não tanto pelo seu poder de síntese, claro. Mas por tudo aquilo que, mesmo quando dá mostras de olhar para trás, prospeta ao futuro. Há algo desse espírito – à falta de outro termo, um certo desprendimento – neste “Concerto para Piano Nº 5 em Mi bemol maior”, vulgo “Imperador”. A diferença, como se sabe, é que o concerto é uma obra que só faz perguntas para as quais já tem resposta, e a sonata não. Por isso aparenta uma dirigir-se ao mundo dos homens e outra à morada dos deuses. Em todo o caso, Freire fica melhor no primeiro estádio. É na terra que fazem falta os poetas.