Dir-se-ia marcado por uma certa
contundência teórica, este novo álbum de Steve Lehman. Afinal, em termos
académicos, remete para aquele caprichoso escrito de André Gide, de 1893, em
que, pela primeira vez na história da literatura, se reconhece o princípio do mise en abyme. Um que, muito
resumidamente, depende da relação de similitude estabelecida entre um fragmento
e o relato que o inclui, uma espécie de síntese intertextual – “Las Meninas”,
de Velázquez, o modelo pictórico que logo lhe saltava à memória. Mas, basta olhar
em volta, o mais difícil hoje em dia é precisamente encontrar objetos que enjeitem
os sinais do código metalinguístico. Pelo que, antes de mais, será importante
passar a palavra a Lehman: “Este título refere-se à necessidade de me manter comprometido
com os valores da surpresa e da descoberta, e, ao mesmo tempo, de tentar
compreender a minha identidade artística e aceitar o facto de que, no fundo,
passamos a vida a redescobrirmo-nos”, diz nas notas de apresentação. Para
comunicado de imprensa, não está mal. Claro que Italo Calvino – na sua altura,
ele próprio nenhum estranho à técnica do mise
en abyme – lhe foi superior quando, em “Se Numa Noite de Inverno um
Viajante”, contou: “Gostaria que todos os pormenores que escrevo concorressem
para transmitir a impressão de um mecanismo de alta precisão mas ao mesmo tempo
de uma fuga de encadeamentos a remeter para algo que permanece fora do raio de
visão.” Não há melhor resumo daquilo que se passa neste disco.
“Mise en Abîme” está recheado de conversas:
reais e potenciais. O que é o mesmo que dizer que cada peça de Lehman se organiza
a partir de uma posição de diálogo com outras músicas, existentes ou não.
‘Parisian Thoroughfare Transcription’ é disso um paradigma: contrariamente ao
que tudo indica, não se trata de uma transcrição do tema homónimo de Bud Powell,
mas, sim, de uma frágil e perentória revelação que se desfaz mal se forma,
constituída por uma gravação caseira de Powell a tocar Chopin, de trechos de
uma entrevista sua e, ainda, por um solo subliminar de Lehman em saxofone alto
que, aqui, é como um fantasma que parte em todas as direções e em todos os
cantos se desdobra, entre muitas coisas mais ocultando a noção de autoria. Há
outros momentos assim, com fissuras cujo preenchimento provém de semelhantes
aparições, capazes de sugerir continuidades irrealizáveis, de operar ilusões
referenciais, mas não é aí que mais se evidenciam as virtudes especulativas de
Lehman. É quando reflete sobre os problemas da sua escrita, quando filtra
normas relativas à sua génese e se vira para o seu processo de criação que mais
se manifesta o poder que a transformação exerce sobre si. Neste seu octeto, curiosamente,
é o vibrafone personalizado de Chris Dingman, polvilhado de duplos sustenidos,
que articula a infinidade de junções visitada por Mark Shim ao saxofone tenor,
Drew Gress ao contrabaixo, Tyshawn Sorey na bateria, Jonathan Finlayson no
trompete, Jose Davila em tuba e Tim Albright ao trombone.
Numa era em que o jazz é rico
naquele heroísmo desencantado de figuras que nada têm senão o que consigo
carregam, Lehman liga-se a uma rede de apoio que traz mais significado àquilo
de que estamos apenas habituados a entender o sentido: uma música sujeita à vivência
de todos quanto a escutam.