27 de junho de 2015

Agenda: Jazz a norte, sul e ilhas



Peter Brötzmann & Steve Noble, ZDB, por Vera Marmelo

Mais ambicioso no projeto do que no programa, dar-se-á hoje por encerrado, na Maia, o Jazz no Parque Central. Aliás, quando ao palco subirem BounceLab, do guitarrista Mané Fernandes, pelas 18h, e The Jazz Refugees, do cantor Kiko Pereira, pelas 21h30, poderá um cético ter por certo que tão hipocorístico cartaz mais não fará que disputar tão audaz designação. Mas a verdade é que se trata de gente com perfeita consciência da capacidade do jazz em comunicar com o mundo a partir da periferia, pelo que o perfume do cosmopolitismo assomará às suburbanas sacadas que cercam o relvado.Quem deu com o jazz nas franjas da sua sensibilidade foi o malogrado Bernardo Sassetti, a que se dedicará o concerto de amanhã às 21h30, na Casa da Música, no Porto, pelas mãos do vicarial João Paulo Esteves da Silva e da vigorosa Orquestra Jazz de Matosinhos.Ainda a norte, na próxima sexta, às 21h30, refira-se a presença de Peter Brötzmann e Steve Noble no Teatro Municipal da Guarda. Já de hoje a oito, pelas 22h30, o duo tocará em Braga, no GNRation, na ponta final de uma digressão de três datas nacionais que terá início em Lisboa, na quinta, dia 2, com uma apresentação na ZDB à hora do costume. Só nervo, aquando da última passagem do saxofonista e do baterista por Portugal, em outubro, ouviu-se ‘Lonely Woman’, de Ornette Coleman, e vinha à ideia o corpo de uma lagartixa cortado ao meio, com a parte do rabo a mexer mesmo após ter sido separada da parte da cabeça. 

Fortuita, é uma imagem que não deverá estar ausente da reunião marcada para o Grande Auditório da Culturgest, hoje, às 21h30, entre o ‘novo trio’ de Mário Laginha (com Bernardo Moreira ao contrabaixo e Miguel Amaral na guitarra portuguesa) e o norte-americano Dave Liebman, na capital para o encontro anual da Associação Internacional de Escolas de Jazz (consulte-se a agenda do Hot Clube).Em matéria de construção de vernáculo a partir da desintegração da linguagem formal, outro destaque, em Lisboa, recai sobre o arranque do Jazz im Goethe-Garten (prossegue até dia 16), com a atuação de Albatre (Gonçalo Almeida, Hugo Costa e Philipp Ernsting), vindo da Holanda e a guiar estilos ao matadouro, na quarta, dia 1, às 19h, e do trio Jean Louis (Joachim Florent, Francesco Pastacaldi e Aymeric Avice), mais charmoso, dia 2, à mesma hora.

Nas ilhas: atenção ao Funchal Jazz, que ao longo da semana animará os jacarandás da Avenida Arriaga com combos do Conservatório – Escola Profissional das Artes da Madeira e que, no Parque de Santa Catarina, quinta, sexta e sábado, acolhe o quinteto de André Fernandes (dia 2, às 21h30), os quartetos de Joe Lovano (também na quinta, às 23h) e de Miguel Zenón (dia 3, pelas 21h30), o quinteto de Kurt Elling em versão ‘festival da canção’ (sexta, às 23h), o trio de Christian McBride (sábado, 4, às 21h30) e o E-Collective, de Terence Blanchard (sábado, às 23h); em Ponta Delgada, sexta, às 21h30, José James cantará Billie Holiday no Teatro Micaelense transformando o amador na coisa amada.

Burning Spear “Social Living” (Island/Caroline, 2015) & Culture “On The Front Line: The Virgin Front Line Albums” (Virgin/Caroline, 2015)



Tinham o olhar chamuscado pela desconfiança e pelo desdém, estriado pela troça e pelo temor. E faziam questão em deixar-se fotografar cercados de volutas de fumo branco, eucarístico, contínuo, contrário aos sinais dos índios, no qual se embrulhavam como numa mortalha. Do mundo sabiam o nome dos mártires, que cantavam, em refrães que tanto pareciam enxames envenenados por agoiros quanto alados rifões pela paz. O seu messias, Hailé Selassié, em 1963, num discurso às Nações Unidas, leu-lhes o manifesto: “Enquanto não for permanentemente desacreditada a filosofia que declara uma raça superior a outra; enquanto existirem cidadãos de primeira e de segunda; enquanto a cor da pele for mais importante do que a cor dos olhos; enquanto não forem garantidos a todos por igual os mais básicos direitos humanos; até esse dia, os sonhos de paz, cidadania mundial e governo de uma moral internacional irão continuar a ser uma ilusão, perseguida mas jamais alcançada. Igualmente, enquanto não forem superados e destruídos os ignóbeis regimes que suprimem os nossos irmãos em Angola, Moçambique e África do Sul; enquanto a compreensão, a tolerância e a boa vontade não substituírem o fanatismo, os preconceitos e a malícia; enquanto não se levantarem e falarem como seres livres todos os africanos, iguais aos olhos dos homens, como são no céu; até esse dia, o continente africano não conhecerá paz. Lutaremos, se necessário, e sabemos que iremos vencer, pois somos confiantes na vitória do bem sobre o mal.”

Com espuma na voz, e ideologia convertida em cinzas, outra coisa não repetiam Winston Rodney (Burning Spear) e Joseph Hill (Culture) em 1978, quando gravaram estes discos. Como pano de fundo, uma Jamaica à beira da guerra civil, com aviões enviados pela CIA a vomitar armas sobre os bairros de lata de Kingston como quem semeia ruínas e o FMI a esvair a economia em sangue com extorsionárias taxas de juro. Ainda assim, o facto do ano foi o “One Love Peace Concert”, com Bob Marley a juntar em palco Michael Manley e Edward Seaga como quem obriga irmãos desavindos a fazer as pazes. Mas sabe-se que os rastafáris estavam do lado de Manley e de medidas sociais (sistema nacional de saúde, escola pública, salário mínimo, programas de literacia para adultos, reforma agrária) que se diriam saídas da pena de Marcus Garvey. “Social Living” fala de tudo isso – a reedição inclui as versões dub dos temas – de modo perfeitamente exponencial, e com Rodney estão os membros dos Aswad (Brinsley Forde, Angus Gaye, Donald Griffiths, George Oban e Courtney Hemming), bem como Sly Dunbar e Robbie Shakespeare. Também aos Culture (de Hill, Albert Walker e Kenneth Paley) se juntaram baterista e baixista para as sessões que, entre 78 e 79, a Front Line lançou enquanto “Harder Than the Rest”, “Cumbolo” e “International Herb” (um quarto álbum, “Black Rose”, então arquivado, permanecia até aqui inédito). E o que se ouve é a promoção da dignidade, da consciência, da união e de tudo o que se deve fazer por amor.

20 de junho de 2015

Saluzzi: Imágenes – Music for Piano (ECM, 2015)




Horacio Lavandera (p)


Nem só o título deve este disco a Debussy. Apesar de “Imágenes”, propriamente dita, assumir contornos de noturno. Seja como for, como memórias que a certa hora se acendem, encontra-se o fulgor do impressionismo em muitas destas peças para piano solo (nomeadamente daquele que, através da habanera, tingiu a cortina que se fechou sobre o século XIX com as cores da nostalgia e do exotismo). Atente-se às suas designações: “Imágenes” (2001), “Los Recuerdos” (1998), “Montañas” (1960), “Romance” (1994), “La Casa 13” (2002), “Claveles” (1984), “Moto Perpetuo” (2000), “Media Noche” (1990), “Vals Para Verenna” (1987) e “Donde Nací” (1990). Parte – ou, quiçá, a totalidade, nunca é óbvio – de uma obra com presença constante na vida de Dino Saluzzi, mas que até agora se mantinha secreta, pois, das suas colaborações com Gato Barbieri ou Jorge López Ruiz até às gravações para a ECM com o grupo familiar ou àquelas em que recorreu à prata da casa da editora (Haden, Favre, Mikkelborg, Rava, Lechner), jamais o seu nome surgiu divorciado do bandoneón, pese embora os dotes de multi-instrumentista que cedo revelou em “Kultrum” (1983). E o que se pode dizer é que também com o piano em mente permanece o argentino adstrito à subtileza. Ainda que, do mesmo modo que sempre permitiu que o ar no fole do seu instrumento soasse contaminado pelo folclore andino, algo do que, aqui, mostra, parece vir acima de tudo comentar a própria tradição pianística. Mas, claro, por vezes constata-se a evidência que nunca houve música, assim, a conduzir o piano àqueles verdejantes planaltos bordejados por neves e nuvens.

Nu Yorica! Culture Clash in New York City: Experiments in Latin Music 1970-77 (20th Anniversary Edition, Soul Jazz, 2015)



Tinham sede no Harlem, é sabido, mas estendiam-se por toda a cidade com o vigor e o rigor de qualquer força oculta. Ou seja, estavam numa terra que não era bem a sua mas que, no entanto, não iriam permitir que se tornasse outra coisa que não uma projeção de si mesmos. Tinham origem porto-riquenha, cubana, dominicana, panamiana, colombiana ou brasileira, e em cada ação denunciavam uma aguda e imediata perceção das singularidades da vida de emigrante que, curiosamente, logo servia de referência para comunidades (afro-americana, mexicana, italiana, espanhola, filipina) que lhes tinham precedência mas não mais ilusões quanto a direitos adquiridos e sentido de propriedade. A sua música – morada de todas as tensões mas igualmente um dos incontornáveis endereços da utopia na arte urbana da segunda metade do século passado – durou enquanto os seus bairros se mantiveram de pé e foi uma espécie de realização do impossível. Estava já com a chama extinta quando a Soul Jazz a atiçou através do lançamento desta antologia, em 1996, mas cedo se provou que as suas qualidades permaneciam intactas. O mesmo se pode dizer agora, não obstante a inexatidão cronológica a que conduz a inexplicada ausência dos temas de Harlem River Drive face ao alinhamento da primeira edição: os únicos que, de facto, provinham daquele 1970 no subtítulo. Também o par de canções dos Ocho difere dos da versão original, não se sabe se por defeito ou feitio, e surgem aqui novidades de Charlie Palmieri, Eddie Palmieri e Ricardo Marrero. Seja como for, a crónica destas movimentações pela Nova Iorque dos anos 70 – a que se somam as de Rafael Cortijo, Stone Alliance, Bobby Vince Paunetto, Cachao, Tempo 70, Joe Bataan ou Grupo Folclórico Y Experimental – torna a lembrar a impossibilidade do pensamento único e o ridículo de qualquer discurso que dê mostras de assentar numa cultura oficial. E é disso que o amanhã se faz.