28 de abril de 2018

Ella Fitzgerald & Louis Armstrong “Cheek To Cheek: The Complete Duet Recordings” (Verve, 2018)


Na coleção de fitas magnéticas de Louis Armstrong mantidas na sua casa-museu, em Queens, encontram-se múltiplas versões de ‘Bess, Oh Where’s My Bess?’. Remontam à gravação de “Porgy and Bess” e, segundo Ricky Riccardi, biógrafo do trompetista, Louis telefonava na altura a Russell Garcia, o orquestrador das sessões, dizendo: “Russ? Ouço-te todas as noites antes de ir para a cama.” Numa bobine, decorada com uma distinta collage (daquelas que provam que Armstrong possuía mais em comum com Picasso do que a capa da revista “Life”), a canção surge treze vezes seguidas para Louis ensaiar sem ter de a rebobinar – e que dádiva para a ciência seria analisar o resultado de uma ressonância ao seu hipocampo feita nesse momento! Mas não foi fácil. Algo na ária dos irmãos Gershwin mexia consigo. Na ópera, Porgy, um pedinte, canta-a mal sai da prisão e se apercebe que Bess, por quem se tinha apaixonado, e a quem, como é costume dizer-se, tinha dado uma vida humilde mas honesta (pelo menos até à cena em que mata um antigo amante dela com as próprias mãos), havia ido nas falinhas mansas de um velho passador de cocaína e saído da cidade. 

Era tudo terrivelmente familiar para Louis, claro, e, já agora, para Ella Fitzgerald também: tinham vindo os dois de lares desfeitos, tinham virado calçada, dormido na rua, vivido em orfanatos e aprendido a suportar os desequilíbrios patológicos de criminosos. E era vê-los agora: universalmente aclamados como os grandes cantores do seu país, com os impecáveis “Ella and Louis” e “Ella and Louis Again”, lançados entre 1956 e 1957, a reinventar a roda no que diz respeito ao modo de dar voz a Berlin, Kern, Carmichael, Porter ou Vernon Duke. E Louis, nada estranho à expetoração, com a ‘Bess’ atravessada. Quando finalmente a tirou da garganta foi como se a tivesse arrancado do fundo de si. Norman Granz disse um dia que ao mostrá-la a Ira Gershwin, o libretista, o viu ficar reduzido a lágrimas, esmagado pela emoção. Não se sabe que reação teria, hoje, ao ouvir meia dúzia de takes inéditos do tema em que Louis se interrompe continuamente como se não se conhecesse a si mesmo. Provavelmente choraria mais ainda. São extras que tornam esta edição definitiva.

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