A
edição fora de África de música africana contemporânea é normalmente acessória
a uma problemática que se presume que lhe seja endémica e que se revela mais
uma questão de consciência do que de ciência: a da representação do real. E,
numa certa perspectiva amplamente mediatizada, um pouco ao jeito do que no
mundo da literatura aconteceu com Ishmael Beah, no cenário de devastação que
acompanhou as guerras civis na Libéria e na Serra Leoa ao longo dos anos 90 dificilmente
se encontraria trupe cuja efectiva existência se provasse mais inspiradora do
que a dos Sierra Leone’s Refugee All Stars, embora operassem estes no sentido
contrário ao da narrativa contada pelo menino soldado. Porque, e este seu
terceiro álbum glorifica a tendência de modo indubitável, a missão dos sobreviventes
serra-leoneses improvisadamente agremiados em campos mantidos na Guiné pelo Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados é, essencialmente, uma de
transcendência. O que, muito paralelamente, relembra também que, por se fixar
em expressões tradicionais em vez de populares, nem sempre se salvaguardam no Património
Oral e Imaterial da Humanidade da UNESCO aqueles que no coração das trevas
encontram força para verdadeiramente refundar a fantasia. De outra coisa não
trata “Radio Salone”, numa redentora e resiliente expressão capaz de trazer à
memória antigos expoentes da música moderna serra-leonesa, que, mantendo uma
singular disposição antilhana, estabeleceram no seu tempo uma vibrante ligação
entre rumba e afrobeat, como Sabanoh
75, Super Combo Kings, Afro National Band ou Muyei Power, há anos esquecidos e,
no presente quadro de pequenas editoras consagradas à reedição de clássicos
africanos das décadas de 60 e 70, inexplicavelmente ausentes de qualquer
antologia. O que só torna este lançamento ainda mais precioso.
(Trailer do doc. "Sierra Leone's Refugee All Stars", 2005, realizado por Zach Niles e Banker White)
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