12 de janeiro de 2013

Caetano Veloso "Abraçaço" (Universal, 2012)




A produção de Caetano Veloso com a banda Cê (desde 2006 expressa em três discos de estúdio e dois ao vivo) assenta numa delicada combinação de radicais desideratos: exploração de um campo de conflitos aparentemente gerados a partir da fragmentação da obra anterior; inauguração de um capítulo de criatividade e cooperação que se revele não só um inteligente desenvolvimento intrínseco à especificidade artística do seu agente fundamental mas igualmente um contribuinte para processos exteriores de transformação cultural; evocação da ideia de arte enquanto mito mas também a sua reconfiguração como uma concreta área de teste, diálogo e alteração das condições para a sua receção; música enquanto meio-ambiente; identidade como um ponto de chegada. Isto é, um estado a que o seu mentor raramente voltou desde os álbuns com A Outra Banda da Terra. E a verdade é que nada disto, tão desafiante e sutil, se pode dar do dia para a noite, ainda para mais quando em seu redor desponta uma ruidosa celebração motivada pela conformista consensualidade das efemérides (em 2012 Caetano cumpriu 45 anos de carreira, 70 de idade e, por entre inúmeras acoladas, foi distinguido com o Grammy Latino de “Personalidade do Ano”).

A exposição interativa deste método – tratando da hierarquizada negociação entre expectativas intelectuais e emocionais e as circunstâncias objetivas da sua tradução – foi sintetizada entre 2008 e 2009, por Caetano, no blog “Obra em Progresso”, no qual se pressentia a ação corretiva e subversiva de um administrador que fazia a estrutura vacilar à medida das suas inquietações. Ouvindo-se “Cê” (2006) e “Zii e Zie” (2009) informado por este “Abraçaço” identifica-se o quanto Caetano manipulou as qualidades sensoriais das suas comunicações e reconhece-se um progressivo ensaio de proposições experimentais. E, em contraste, só a deliberada espacialidade, crepuscular reverberação e minuciosa solenidade deste exemplarmente discreto conjunto de canções permite valorizar aqueles que, no par de tomos prévios, concentravam uma fúria caleidoscópica mas fútil e momentos de demagógico ressentimento. No fundo, torna-se público o que um criador faz disfarçadamente: avaliar as possibilidades expressivas de materiais inéditos ou aventar-lhes novas funcionalidades. “Abraçaço” consolida essa singular mensagem, perversamente inscrita numa estratégia estética de descontinuidade com o fardo da história precedente.

É neste derradeiro álbum com Pedro Sá, Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado que mais evidente fica a pertinência formal de cada instrumentista numa articulação jamais autónoma; ou seja, em que nada se dá de forma arbitrária ou individualista, mas antes pelo primado do organismo engendrado, pelo enlace coerente dos vínculos existentes entre os músicos, pela prioridade do sistema face à composição. Aqui (na desídia de ‘Estou Triste’ ou na monotonia de ‘Um Comunista’), cada nota é um símbolo dos limites do vocabulário do grupo, congruente ao seu estratificado discurso mas nem por isso prescindível; cada compasso habitado pela potencialidade máxima de teoria e prática. E é neste contexto que se descobre a missiva de regeneração implícita ao repertório. Tudo é claro e categoricamente simples; cada timbre num ponto de interseção com outro, enriquecendo as texturas de temas que, por vezes, nem tonalidade definida parecem ter, quase se descosendo num código oculto. Caetano sempre teve mais imaginação do que discernimento. Mas com o fim da ‘trilogia Cê’ mostra que a participação da sua plateia e o reencontro com uma banda eram o impulso necessário à renovação de todos os seus imponderáveis, estabelecendo “Abraçaço” como o mais belo e provisório constituinte da sua dramática relação com o mundo.

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