De Lupu, há uns dez anos, iam
saindo genéricos como “… Plays Brahms”, “… Plays Schubert”, “… Plays Beethoven”,
com a Decca a marcar passo até que o romeno se decidisse por voltar aos originais.
Quando as suas reticências se prolongaram, a editora reagiu lançando as lapidares
“Complete Decca Solo Recordings” e “Complete Decca Concerto Recordings”. Agora
que se cumpriram duas décadas sobre a sua última ida a estúdio, o pianista entra
no clube dos septuagenários (depois de Argerich, Pollini, Barenboim, Pires ou
Freire, contemporâneos seus com que foi sendo comparado) e a etiqueta mostra que
nunca o chegou a remover do altar, reunindo efetivamente as suas gravações completas.
Aqui estão, portanto, os seus discos com Barbara Hendricks produzidos para a Warner,
bem como os que, a quatro mãos, dividiu com Barenboim na Teldec e com Perahia na
CBS, a somar, então, aqueloutros, mais emblemáticos, que registou de 1970 a
1993 para a chancela britânica. Entre esses, não obstante a excelência da sua integral
de sonatas para violino e piano de Mozart com Szymon Goldberg e o inultrapassável
brilhantismo do LP dedicado às de Debussy e Franck que partilhou com Chung, é
enquanto solista e a solo que se destaca: no terceiro concerto de Beethoven
(com Mehta e a Filarmónica de Israel), quase perigosamente refinado, nas sonatas
de Schubert (tanto o dos estados de espírito mais inacessíveis quanto o das
emoções à flor da pele), nas coleções do insólito de Schumann (“Cenas da Infância”
e “Kreisleriana”) e nos derradeiros opúsculos de Brahms, música que mergulhou na
escuridão que vivia dentro de si.
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
28 de novembro de 2015
Radu Lupu “Complete Recordings” (Decca, 2015)
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Kenny Barron “At the Piano” (Xanadu/Elemental, 2015)
Após
uma salva inicial de meia dúzia de títulos, a campanha de reedições do catálogo
da Xanadu começada no verão passado pela Elemental é agora enriquecida com novas
referências: “Skate Board Park”, de Joe Farrell, sem a esperada reprodução da
capa original, “Feelin’s”, de Teddy Edwards, de modo imprevisto, já que sempre
se supôs tratar-se de um ativo da Muse, e, sem acidentes de percurso, este “At
the Piano”. O disco, de certa forma, era um ás que Don Schlitten tinha na
manga. Conforme escrevia nas suas notas de apresentação: “A 2 de abril de 1973
produzi um álbum de Kenny Barron, que, mais tarde, batizámos como ‘Sunset to
Dawn’ [precisamente para a Muse, que dirigia com Joe Fields]. Foi ao longo da
gravação de ‘A Flower’, [tema] com a delicadeza e o requinte que o seu nome
indica, que decidi que viria um dia a produzir um disco inteiro de piano solo [seu].”
Isto, porque, presume-se, da sessão, ‘A Flower’ era o único registo em que o
pianista ou não recorria ao quarteto que o acompanhava ou dispensava o piano
elétrico. Com resultados invariavelmente superlativos, Barron continuou na
Muse, mas só quando Schlitten o pôde acolher na sua nova editora, em 1981, se
estreou, então, num formato que se lhe diria assentar como uma luva, embora,
para os padrões da época, não deixasse de parecer anacrónico. Em boa hora o
fez, claro. À sombra de Tatum, Powell ou Monk, (quase) todo de um deslumbre sem
ostentação, intricado sem chegar a ser incoerente, mais notável pela elegância
das suas linhas do que pelo que põe em relevo, é um marco na sua carreira e,
quiçá, na vida de quem o escuta.
“Coxsone’s Music” (Soul Jazz, 2015)
No
que diz respeito à narrativa Studio One, depois dos muitos que deu já em
frente, dir-se-ia que a Soul Jazz dá agora o proverbialmente necessário
passo atrás. Aliás, mal surgiu o anúncio desta antologia foi num não menos popular
rifão de Marcus Garvey que se pensou: “Um povo que não conhece a sua história e
não valoriza o seu passado é como uma árvore sem raízes.” Ou seja, no plano de
lançamentos da editora britânica, “Coxsone’s Music” pode ter chegado após
aquela inaugural sequência de ações perfeitamente descrita em “Studio One Jump
Up: The Birth of a Sound, Jump Up Jamaican R&B, Jazz and Early Ska”, de fevereiro
último, mas os acontecimentos que vem relatar são os que imediatamente a
precederam. Daí o seu rigoroso subtítulo: “The First Recordings of Sir Coxsone
The Downbeat 1960-62”, quando se sabe que Clement “Sir Coxsone” Dodd só em 1963
fundou o estúdio e editora Studio One. Esperar-se-ia, apenas, que a prosa sobre
os materiais aqui reunidos fosse mais coalescente com a dos factos que
culminaram na independência da Jamaica, promulgada precisamente a 6 de agosto
de 1962 – assunto de todo ausente das notas de apresentação que compõem parte
significativa das 28 páginas do livreto. Pois aquilo que cantavam Clancy Eccles
em ‘Freedom’ ou Basil Gabbidon em ‘Independent Blues’ ganharia assim densidade
dramática, para não falar da acuidade de que, nesse contexto, se revestiriam as
bíblicas ruminações de Jiving Juniors em ‘Over the River’ ou, novamente, de
Eccles em ‘River Jordan’. Porque Coxsone mais não fez que conduzir a música
jamaicana a um terreno fértil em milagres.
21 de novembro de 2015
"Lang Lang in Paris" (Sony, 2015)
Chopin: Scherzi; Tchaikovsky: Les Saisons
Lang Lang começa lentamente a tocar a Barcarola, de “As
Estações”, de Tchaikovsky, e logo o ecrã é tomado por platitudes turísticas: o
Sena cruzado por pachorrentos Bateaux-Mouches, a Pont Neuf atravessada por vaidosos
pares de namorados, uma criança deslizando de trotinete até ao Quai de la
Tournelle, a basílica de Sacré-Coeur, inchada como um zepelim entre as nuvens, o
Génie de la Liberté, orientando o trânsito da Place de la Bastille enquanto carrega
na mão esquerda as correntes quebradas do despotismo, o agulhão sombrio da
catedral de Notre-Dame, o foguetão da torre Eiffel apontado ao céu lilás. A
cada plano da cidade corresponde outro do pianista chinês, dependurado de umas
águas-furtadas como uma górgone, sentado à mesa de um café ou admirando a vista
de um terraço. De olhos bem abertos e com o cabelo cuidadosamente espetado,
traz à memória um daqueles gatos que Raymond Guix pinta no seu estúdio da rua
Lepic e coloca em vigília noturna por toda a Paris. Em off, fala das fortes relações entre a capital francesa e a música
romântica. Mas o clima dominante é o do último verso de Pleshcheyev que, em
epígrafe, acompanhava a edição original da Barcarola, um de “misteriosa melancolia”.
E, de súbito, é como se através do DVD se viesse revelar uma dolorosa singularidade
em cada imagem, em cada gesto e em cada nota de música. De forma inesperada, é
na obra do russo (mais dedicada aos meses do ano do que propriamente às suas
estações) que Lang Lang a projeta, já que no Chopin dos quatro Scherzo se esforça demasiado por
introduzir um raio de sol num local em que a luz não entra.
Cheikh Lô “Balbalou” (Chapter Two, 2015)
Radicada
em Paris, a brasileira Flavia Coelho escrevia esta semana no Facebook que não
ia “baixar a cabeça perante aqueles que querem acabar com a nossa liberdade e
cultura”, mantendo em cartaz os concertos já anunciados. Neste disco, mais
concretamente em ‘Degg Gui’, dá voz a qualquer coisa que tem a ver com isso
quando, em português, canta que “Mentira traz medo e dor/ A verdade é bem mais
simples nos conectados num canal de amor” e, de forma mais evangélica, “Abre
seu coração hoje/ Ele te salvará amanhã”. Neste último verso Cheikh Lô
identifica um famoso credo do marabuto Ibra Fall, discípulo de Amadou Bamba: dieuf dieul, isto é, cada um colhe
aquilo que semeia. E é à luz desse mundo de retribuição que “Balbalou” pode ser
entendido. Por isso é com espanto que, em ‘Doyal Naniou’, venha o senegalês
(por filiação) falar de Thomas Sankara, Laurent-Désiré Kabila, Robert Guéï,
William Tolbert, Moussa Traoré ou Nino Vieira enquanto “vítimas de assassinato”,
não tanto enquanto revolucionários, para concluir que, em África, e demais
paragens, “Já chega de golpes de Estado”. Na última estrofe da canção é Oumou
Sangaré a reclamar “Paz em Casamansa/ Paz no Mali/ Baixem as armas”. Como é
óbvio, precisamente o mesmo assunto de ‘Baisson les armes’, depois de Lô chamar
a atenção para “Ucrânia, Rússia, Síria, Afeganistão, República Centro-Africana”
e deduzir que palavras, leva-as o vento. Florbela Espanca dizia o mesmo das
cantigas, e aqui são as de amor – incluindo uma versão de ‘Suzana Coulibaly’,
de Sam Mangwana – que se revelam politicamente mais lúcidas. Felizmente estão
em maioria.
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