Foi lançado no verão de 2015 mas só agora chega a
Portugal, um par de estações e dois prémios Grammy depois. E ao primeiro tema,
‘Walking by Flashlight’, pensa-se vislumbrar do que se trata: um prosseguimento
do anteriormente ensaiado com Dawn Upshaw e a Australian Chamber Orchestra num “Winter
Morning Walks” em parte consagrado à lírica de Ted Kooser. E porque se crê que
a reação a uma e outra coisa será em tudo semelhante, mas também porque se
diria que esta música necessita tanto do fluxo da poesia nas suas partituras
quanto um corpo precisa de sangue a circular nas suas artérias, o que Kooser aí
diz é mais ou menos isto: “Caminhando à luz da lanterna/ às seis da manhã,/ o
meu círculo de luz na gravilha/ oscilando de um lado para o outro,/ coiote, rato-lavadeiro,
rato-do-campo, pardal,/ cada qual do escuro observando/ este homem com a lua à
trela.”
Também Schneider, um dia, e no seu caso ao entardecer, a guiou pela
mão. Foi a 11 de julho de 1998, quando atuava com a sua orquestra no jardim do
Museu da Água, em Lisboa, e cada gesto seu era como o do ilusionista que do Mar
da Palha fizesse subitamente levitar uma enorme esfera enferrujada. Após o
concerto trocávamos palavras de circunstância e, volta e meia, ela dizia: “E
aquela lua, hã? Ia-me mesmo roubando o espetáculo!” Falava com uma leveza algo ensaiada,
quiçá inocente, e um aspeto curioso que passava por distração. Mal continha um
humor seco, em contraste com a voz doce, até que pousou o olhar na Lezíria do
Tejo e pensou nas pradarias da sua terra natal – Windom, no estado do
Minnesota. Mais de 15 anos depois chega, por fim, um disco seu polinizado pelas
memórias de infância, pelos ciclos da natureza, pela vida no campo. Vagamente hipnotizado
pelo bucolismo, embora não possua nada mais regionalmente demarcativo do que a
erupção de samba em ‘Lembrança’, “The Thompson Fields” é como um longo poema
tonal à medida da ingenuidade e da imaginação de uma utópica banda filarmónica de
província. É, também, o seu melhor disco.
No primeiro destes “Salmos de Penitência” para coro
misto dá-se por uma voz só, chorosa e condenada, nada varonil: é a de Adão,
amargamente caído e à porta do paraíso plantado, suplicando a absolvição. No
último, o décimo segundo, a bocca chiusa,
suprime-se integralmente a pronúncia da palavra. Dir-se-ia um retrato do
próprio compositor. Na ombreira entre dois países, Alfred Schnittke (1934-1998)
nasceu na República Socialista Soviética Autónoma dos Alemães do Volga
destinado a medrar com uma inapreensível sensação de perda, quiçá de culpa. Mais
tarde, estabelecido em Moscovo, trabalhava sujeito às prescrições do regime e
da censura e foi escorregando em sucessivos derrames cerebrais até deixar de se
perceber se não falava porque não podia ou porque se via obrigado a permanecer
calado. Para os compor, na Páscoa de 1988, e para assinalar o milénio da
conversão do Principado de Kiev ao cristianismo, socorreu-se de poemas
quaresmais anónimos; é neste contexto que melhor se entende aquele salmo
inicial a recordar as consequências da inobservância dos mandamentos.
Em termos
narrativos, uma das chaves para a leitura do ciclo está no sexto salmo, e na
referência ao martírio de Boris e Gleb, filhos de Vladimir I de Kiev, às mãos
de Sviatopolk, o Maldito (“Quando se aperceberam do barco que subitamente
chegava/ Boris e Gleb gritaram:/ Sviatopolk, não derrames sangue inocente”,
escuta-se na voz de dois sopranos cujo extravagante vibrato faz tanto pensar na superfície da água a tremeluzir quanto
nos gritos impetrantes dos irmãos.) É dos momentos na obra em que a ligação
entre palavra e nota musical se torna mais expressiva. Outro é o que se ouve no
nono salmo, quando uma referência ao vinho se vê acompanhada por um glissando a caracterizar o movimento do
‘bota abaixo’. São instantes em que Schnittke resiste ao impulso daninho da
solenidade perante o sagrado. Mas tudo isto lhe era demasiado caro. Por isso,
como na música da Igreja Ortodoxa Russa, o que aqui se ouve é como aquela onda
imensa que, nas suas entranhas, permite adivinhar uma transfusão do abismo
antes de rebentar.
Na fotografia da capa estão de
fato e gravata cor de laranja Impulse a condizer, um trio de capangas em campanha
eleitoral a observar dos bastidores o discurso do caudilho. À direita, com 72
anos e uma daquelas cabeças rapadas em que se vislumbra o pensamento, está
Kenny Barron. E só ele, agora, através de um título tão oximorónico, para opor
o esforço da intuição ao da informação. Não obstante, e unicamente para o
contrariar, imagina-se um batalhão de dedos sedentos a ziguezaguear por
teclados de computador como matilhas de cães sabujos a esquadrinhar uma propriedade.
Isto, porque através dessas diligentes buscas se costuma ir de encontro a prodigiosos
achados: no caso, que em compasso de samba se escuta aqui uma ‘Dreams’ que pela
primeira vez se ouviu em “Feelin’ it Together”, de 1974, então um veículo para
a flauta de James Moody no qual Barron tocou piano elétrico; ou, por exemplo, que
este alatinado ‘Bud-Like’, já de si uma variante daquele delirante ‘Un Poco
Loco’ que, quiçá sem ironia, Bud Powell estreou em 1951, remonta a “At the
Piano”, o disco a solo de designação redundante que Barron gravou em 1981 para
a Xanadu e que a Elemental reeditou há pouco.
Como se sabe, a crítica de jazz faz-se
com frequência de coisas assim. Mas mais interessante seria concluir que não há
maior prova de fidelidade a este remoto repertório do que testar-lhe a
flexibilidade. Ou, até, notar que estas incursões de Barron pela América do Sul
– que remontam ao seu alvor discográfico mas que ganharam expressão em “Sambao”
(1992), “Canta Brasil” (2002) ou na forma em como tocava Johnny Alf com os The
Brazilian Knights (2013) – nada possuem de clandestino, que de modo algum são
como os amuletos que os turistas contrabandeiam nas suas maletas. Aliás, a
própria ‘Magic Dance’ com que este “Book of Intuition” se inicia possui o
andamento dessa música que se foi desenvolvendo no Rio de Janeiro pelas casas
das tias baianas. O disco passa ainda por Monk antes de terminar com
‘Nightfall’, de Charlie Haden, um manto de seda feito à medida dos corpos que
diariamente vamos deixando pela Terra.
Estava uma noite húmida em Viena, com caudas de
nevoeiro a roçar as esquinas da cidade, e a cor ambarada junto às portas do
Musikverein contrastava com o escuro do céu. Ainda assim, um sábado sem chuva prometia um
inverno menos rigoroso e faziam-se certamente conversas de circunstância nesse
sentido. A lotação da sala estava esgotada. Inserido num ciclo histórico do
Concentus Musicus Wien, ao longo do qual Harnoncourt revisitava as sinfonias de
Beethoven, o programa desse serão temperava os ânimos com um par de cantatas de
Bach. Virando as folhas de sala ninguém esperava encontrar uma carta de
despedida do maestro. Alegando problemas de saúde, anunciava que tinha de
cancelar os seus planos imediatos, mas dizia-se prenhe de ideias, comovido pela
profunda relação estabelecida com aquele auditório (que via como uma
“comunidade de pioneiros”) e, afiançando que o ciclo continuaria “no seu
espírito”, terminava com um apelo: “Mantenham-se fiéis a ele.”
Era o 5 de
dezembro de 2015. Três meses depois estava morto. E hoje reza-se uma missa em
sua memória na capital austríaca. Quem não puder estar presente pode sempre pôr
a tocar este CD com origem exata no ciclo do Musikverein, registado em maio último.
Ou pode, claro, passar revista a uma discografia com pontos altos nas sinfonias
de Haydn, em algumas das que dirigiu de Mozart ou na primeira integral das de
Beethoven (com a Chamber Orchestra of Europe) – aliás, se estiver inclinado
para a antropologia forense poderá, até, recordar o seu Bach ou o seu
Monteverdi. A presente gravação está quase a esse nível, com aquelas trompas de
caça mal se agarrando aos compassos, os compassos mal a elas se agarrando no
Allegro final da 5ª sinfonia. Aí, quando finalmente se passa de Dó menor para
Dó maior, uma tonalidade que já nasceu com um sorriso nos lábios, é o próprio
Beethoven que parece soltar as sujidades que sentia dentro de si. Já a 4ª está
cheia daqueles silêncios que, como ninguém, Harnoncourt sabia transformar em
pólvora. Sejamos-lhe fiéis.