25 de março de 2016

Schnittke: Penitential Psalms (Harmonia Mundi, 2016)


No primeiro destes “Salmos de Penitência” para coro misto dá-se por uma voz só, chorosa e condenada, nada varonil: é a de Adão, amargamente caído e à porta do paraíso plantado, suplicando a absolvição. No último, o décimo segundo, a bocca chiusa, suprime-se integralmente a pronúncia da palavra. Dir-se-ia um retrato do próprio compositor. Na ombreira entre dois países, Alfred Schnittke (1934-1998) nasceu na República Socialista Soviética Autónoma dos Alemães do Volga destinado a medrar com uma inapreensível sensação de perda, quiçá de culpa. Mais tarde, estabelecido em Moscovo, trabalhava sujeito às prescrições do regime e da censura e foi escorregando em sucessivos derrames cerebrais até deixar de se perceber se não falava porque não podia ou porque se via obrigado a permanecer calado. Para os compor, na Páscoa de 1988, e para assinalar o milénio da conversão do Principado de Kiev ao cristianismo, socorreu-se de poemas quaresmais anónimos; é neste contexto que melhor se entende aquele salmo inicial a recordar as consequências da inobservância dos mandamentos.

Em termos narrativos, uma das chaves para a leitura do ciclo está no sexto salmo, e na referência ao martírio de Boris e Gleb, filhos de Vladimir I de Kiev, às mãos de Sviatopolk, o Maldito (“Quando se aperceberam do barco que subitamente chegava/ Boris e Gleb gritaram:/ Sviatopolk, não derrames sangue inocente”, escuta-se na voz de dois sopranos cujo extravagante vibrato faz tanto pensar na superfície da água a tremeluzir quanto nos gritos impetrantes dos irmãos.) É dos momentos na obra em que a ligação entre palavra e nota musical se torna mais expressiva. Outro é o que se ouve no nono salmo, quando uma referência ao vinho se vê acompanhada por um glissando a caracterizar o movimento do ‘bota abaixo’. São instantes em que Schnittke resiste ao impulso daninho da solenidade perante o sagrado. Mas tudo isto lhe era demasiado caro. Por isso, como na música da Igreja Ortodoxa Russa, o que aqui se ouve é como aquela onda imensa que, nas suas entranhas, permite adivinhar uma transfusão do abismo antes de rebentar.

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