Em
depoimento, Andris Nelsons sugere ter prestado especial atenção à
caracterização fisionómica de Shostakovich: “Era uma pessoa nervosa. Quando
vemos o seu aspecto, em fotografias, e, depois, o confrontamos com a música que
escreveu, há ali qualquer coisa que não bate certo, que não se equivale.” Muito
pelo contrário – e nem será preciso citar o Aristóteles de “Analíticos
Anteriores”, por exemplo. Aliás, a má catadura de Shostakovich em tempo algum
disfarçava o profundo desconforto que sentia, com aquele jeito tímido e tenso
constantemente traído por movimentos involuntários – as mãos que não paravam
quietas, o corpo que parecia encolher-se para caber dentro do fato, óculos que
de tão graduados dificultavam o contacto visual, remoinhos que desalinhavam um
penteado em tudo o resto convencional. Além daquela expressão que tinha colada
ao rosto: algo como raiva, receio e ressentimento misturados. Nessa perspetiva,
por sinal, dir-se-ia que nenhuma sinfonia quanto a quarta será tão fiel reflexo
de si: ou melhor, se quisermos ser rigorosos, do Mahler que há em si, pois,
aqui, embora o regurgite de modo particularmente bilioso e violento, Shostakovich
deixa vir ao de cima o que havia assimilado do alemão.
Disso não terá Nelsons
dúvidas: raramente se gravou uma ‘quarta’ tão marcada pela atribulação e pela
agrura e, também, pelo rancor e pela repulsa face ao que, então, passava por solidariedade
de interesses. Um mundo – o da política – em que Shostakovich nunca devia ter
entrado e do qual jamais saiu: em consequência de um depreciativo editorial no
“Pravda” de janeiro de 1936 não teve outro remédio senão cancelar a estreia da sinfonia
e ir para casa aguardar que a NKVD lhe fosse bater à porta naquele padrão “bem
marcado, insuportavelmente explícito”, Nadezhda Mandelstam dixit. Como complemento Nelsons propõe a “Sinfonia Nº 11”,
inspirada pelos eventos de 1905 junto ao Palácio de Inverno de Nicolau II – ou pelos
da Revolução Húngara de 1956? Não se sabe. No Palácio de Inverno da mente
estava já Shostakovich exilado. Pior: Nelsons dirige-a como se o seu autor
viesse da Península de Shostakovich, na Antártica, onde ninguém vive e nada mais
se sente que uma calma de morte.