22 de setembro de 2018

"Bailar Cantando – Fiesta Mestiza En El Perú" (Alia Vox, 2018)

Não é a primeira vez que o Códice Trujillo chega aos discos – já o Capilla de Indias, de Tiziana Palmiero, o gravou na íntegra (na K617, em 2005) e já o próprio Jordi Savall por três vezes o abordou, em “Villancicos y Danzas Criollas” (2003), “El Nuevo Mundo” (2010) e “Les routes de l’esclavage” (2016). Mas a verdade é que o singularíssimo compêndio organizado por Baltasar Jaime Martínez Compañón y Bujanda enquanto Bispo de Trujillo, por volta de 1780, nunca soou tão pouco palimpséstico como agora – e Savall não será o único a problematizá-lo no contexto das reações europeias à questão da imigração, lembrando, em entrevista recente, como os espanhóis “escravizaram milhões em benefício próprio”. Aliás, no códice, a certa altura, surge um esclarecedor mas não menos surpreendente ‘Tonada El Congo’ (que diz assim: “A la mar me llevan/ Sin tener razón/ Dejando a mi madre/ De mi corazón”), através do qual Martínez Compañón parecia sugerir qualquer coisa acerca da futilidade da dominação colonial quando confrontada com a importância dos laços de sangue, com o sentimento de pertença, com o amor. 

Não que Compañón não fosse fluente em politiquês: conforme descrito numa carta sua a Carlos III, o prelado tinha como objetivo “aumentar y hacer más útil su población (…) y que se fomenten así mismo aquellos ramos de industria que siendo útiles a su provincia no traigan perjuicio a las demás del Reyno”. Mas analisando o material que reuniu neste volume, em que soube impor uma espécie de superestrutura narrativa sobre a condição humana, deu igualmente mostras de reordenar as suas prioridades básicas – e é difícil crer que não tenha programado o seu trabalho de maneira a eliciar à risca conclusões deste género. Pois mesmo que não promova um estudo exaustivo do comportamento social, reserva espaço para o pesar, o ciúme, a paixão, a culpa, a piedade e a crueldade, e principalmente, por meio da canção, documenta tudo o que podia haver de comum entre as forças mais contrastantes do vice-reinado do Peru. Longe da prática do barroco andino (que, pela “ânsia de deslumbrar os aborígenes, se mostrava mais desvairada ainda”, de acordo com o que escreveu Ferreira de Castro), este conjunto de tonadas, cachuas, bayles e lanchas não criou uma nova expressão física para velhas verdades espirituais – ao invés, capturou arte acabada de gerar por índios, mestiços, mulatos e africanos, gente que conseguiu deixar por testamento o que jamais chegou a herdar. Esse é um dos milagres do Novo Mundo.

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