1 de setembro de 2018

Don Cherry "Home Boy" (Wewantsounds, re. 2018)


A propósito dos seus discos na Blue Note, Don Cherry disse o seguinte: “Foram os primeiros que compus com base no conceito de que, ao jeito do controlo remoto, vivemos numa era em que podemos mudar de estação. É como na vida: podemos virar a esquina e encontrar outra vida à nossa espera, outro ambiente.” A frase traz à memória um episódio da altura, descrito por Karl Berger: “Ele andava sempre com um pequeno transístor atrás ouvindo música do planeta inteiro, praticando ao som de folclore turco, dos Beatles, de melodias que incluía continuamente nas suas peças.” Depois, insatisfeito com as antenas do seu rádio de pilhas, viria a perder-se no mundo a ponto de, em 1982, num artigo do “The New York Times”, ser apresentado nestes termos: “Muitos músicos são nómadas, em perpétuo trânsito entre continentes, em busca de novas experiências e cenários, de melhores condições de trabalho ou mais dinheiro. Mas Don Cherry, que primeiro deu nas vistas como membro do quarteto de Ornette Coleman, será porventura o maior andarilho da música moderna.” 

Sim, um mapa coroplético que indicasse os sítios por onde passou não ficaria com muito espaço em branco. E como é apanágio de quem se habituou a viver ao sabor do vento, aprendeu a ver sinais em tudo: um belo dia, em Paris, teve um encontro serendipitoso com um jovem músico chamado Ramuntcho Matta, iam ambos de melódica na mão. De certa forma, foram o Flautista de Hamelin um do outro, com Matta, em 1985, a conduzir Cherry a estúdio para gravar este “Home Boy, Sister Out” com o Miles Davis de “You’re Under Arrest” em mente, quiçá, embora Cherry estivesse mais familiarizado com o pós-punk. Matta contratou os músicos, pôs Elli Medeiros (a namorada) no coro e Cherry a cantar de modo inconvicto, levando-o provavelmente a recordar o período em que foi vizinho dos Tom Tom Club. Aliás, em relação ao livro de estilo adotado basta dizer que um destes temas está em “Disco Not Disco” (Strut, 2000). Mas o mais descoroçoante é ouvir Cherry num rap a alertar para os males da droga quando estava agarrado à heroína, as vielas do mundo trocadas já pelas veias dos seus braços.

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