22 de setembro de 2018

“Onda de Amor: Synthesized Brazilian Hits That Never Were (1984-94)” (Soundway, 2018)

Observando bem o subtítulo, em termos da compilação dir-se-ia estarmos perante uma doença auto-imune - “êxitos que nunca foram”, chama-lhes Millos Kaiser, o autor deste retrato muito pouco domesticado [à esquerda, na foto do Duo Selvagem], de certa forma trazendo à memória Harry Smith, o arquiteto deste cânone peculiar desde que, em 1952, serviu de curador na famosa “The Anthology of American Folk Music”, para a editora Folkways. Aliás, ainda hoje, o maior elogio que se pode consagrar a compêndios desta natureza é o que John Fahey fez por alturas da reedição da antologia: “Os Manuscritos do Mar Morto? Nã… Dêem-me antes a ‘Anthology’.” E em “The Old, Weird America”, Greil Marcus refere-se assim à coleção: “Um documento [com raízes no] oculto disfarçado de um tratado académico sobre alterações de paradigma numa musicologia arcaica.” Kaiser não diria tanto, presume-se. Mas quando, juntamente com Augusto Olivani, seu parceiro no Duo Selvagem, a dupla de DJ de São Paulo, respondeu a um questionnaire de Proust colocado por um sítio brasileiro, deu-se com a seguinte troca de impressões: “Qual a sua ocupação favorita?” MK: “Procurar discos legais que ninguém conhece.” “Quem são os seus heróis da vida real?” AO: “Alan Lomax.” 

Efetivamente, como é claro, gostam de aparências. Ou seja, neste particular, Kaiser prova-se capaz de gerar significado a partir de quase nada: lá está, a partir de “êxitos que nunca foram”, como são os de Ricardo Bomba, Vânia Bastos, Controle Digital, Batista Junior, Fogo Baiano, Via Negromonte, Electric Boogies, André Melo e Região Abissal, gente que lançou um álbum ou dois, por vezes um único single, excecionalmente um maxi, com um pé a resvalar para a música axé e outro já lambuzado pela lambada ou por outra qualquer fruta da época. Temas, segundo Kaiser, mal-amados, embora possuam condições para ser queridos, e que, por isso, são como parentes pobres dessoutros que Ed Motta reuniu em “Too Slow to Disco”. Em detrimento dos nutrientes contérminos contidos nas produções de Lincoln Olivetti do período, por exemplo, é como matar a fome epistémica com restos. Às vezes, é o que sabe melhor.

Sem comentários:

Enviar um comentário