30 de agosto de 2014

Debussy: Preludes, Book I & II (Piano Classics, 2014)


Hiroko Sasaki, piano
Em abril de 2010, dias antes de apresentar estes “Prelúdios” no Auditório Weill do Carnegie Hall, em Nova Iorque, Hiroko Sasaki declarava a um blog de atualidade cultural: “Debussy colocou marcações absolutamente extraordinárias nas suas pautas. Mas, no caso dos ‘Prelúdios’, vale a pena referir que escreveu os títulos no fim de cada peça, entre parêntesis, precedidos por reticências, quase como quem diz: ‘Se desejar ouvir as coisas desta maneira, esteja à vontade, mas é só mesmo se quiser’. Acho belo que apareçam assim, como uma adenda, mas levo-os o mais possível à letra. Quando toco as primeiras notas de ‘Passos na Neve’ fico sozinha numa paisagem em que tudo é muito frio e branco e gelado e solitário. Em ‘As Colinas de Anacapri’ estou a sul, numa ilha, sentindo a brisa no rosto, com o azul celeste do Mediterrâneo em fundo.” É verdade que a visão que a japonesa possui destes dois livros é de tal modo atmosférica que poderia ilustrar um boletim meteorológico. E o próprio Debussy, por altura de “Estampes”, falava em termos de um suprimento qualquer para os que não tinham hipótese de viajar. Mas não se pode dizer que os instintos da pianista estejam completamente sedados: quando um prelúdio a guia por uma viela escura, ela acautela-se; quando outro, ao luar, sugere sentimentos pitorescamente vulneráveis, ela mostra recato. Em sua defesa, como a arma secreta de um super-herói, um Pleyel de 1873, no qual consegue “expressar aspetos dos ‘Prelúdios’ a que não acedia através de instrumentos modernos.” Escutá-la é encontrar a solução para um problema que se tinha já como irresolúvel: como combinar lirismo, forma e mistério na devida proporção

“Todos os Musicais de Chico Buarque em 90 Minutos” (Biscoito Fino, 2014)



Como se sabe, a ideia, boa e absurda, foi, em termos aproximados, aplicada pela Reduced Shakespeare Company às obras do autor de “Hamlet”. E, mesmo se confundem o nome da companhia norte-americana nas suas notas de apresentação, Charles Möeller e Claudio Botelho, encenador e dramaturgo deste delírio, reconhecem o vínculo: “Ali, poucos atores misturam todos os enredos e personagens do Bardo para criar uma nova peça, com sentido único e satírico.” Pensaram em Chico e “a ideia brilhou como uma lâmpada diante de nós.” Há coisa de 15 dias, e após uma temporada no Rio de Janeiro, o resultado – que, a rondar os 100 minutos, tem a duração de um jogo de futebol com os descontos – estreou no Teatro FAAP, em São Paulo, e manter-se-á em cartaz até dia 7 de setembro.

Quanto ao que passa em palco, a gravação, em estúdio, com o elenco original (Davi Guilhermme, Estrela Blanco, Felipe Tavolaro, Lilian Valeska, Renata Celidonio e Malu Rodrigues), destapa só a ponta do véu. Mas, ainda pela pena dos produtores, é útil saber que “Não é uma revista. Também não é um recital. Escrevemos uma peça nova, personagens, enredo, e nosso texto são as canções. (…) Em nenhum momento há qualquer referência às peças ou filmes originais.” Nada a apontar, se não for tida como incúria a omissão daqueles que, ao longo dos anos, tornaram Chico seu comissionista criando as circunstâncias para que nascessem as canções: por exemplo, no livreto, nem uma palavra para Naum Alves de Souza (de “O Grande Circo Místico”), para Augusto Boal (de “O Corsário do Rei”), Cacá Diegues (de “Quando o Carnaval Chegar”) ou Miguel Faria Jr. (de “Para Viver um Grande Amor”).

Mas claro que sobram as canções. Para recordar já um par delas, e também assim se referir que estão, no CD, com ordem trocada face ao que determina a arte gráfica da edição, aqui surgem ‘Biscate’, em que Valeska faz a sua melhor imitação de Gal, que a cantou em 93, ao contrário de outros instantes em que traz antes à memória o artifício que pode haver no grito de uma gaivota, ou ‘A Violeira’, em que Blanco encarna um provincianismo perfumado a pachuli, capaz de lembrar Chayene, de “Cheias de Charme”, mais até do que Elba Ramalho, que em 83 deu voz à canção. O musical procede à domesticação dos mais distintos afetos e dos instintos mais desavindos. Ignora “Dança da Meia-Lua” e “Cambaio” mas evoca muito dos filmes de Diegues ou Faria Jr. e da “Ópera do Malandro” (de ‘Pedaço de Mim’ a ‘Geni e o Zepelin’) ou de “Gota d’Água” (de ‘Bem Querer’ a ‘Flor da Idade’). Tem momentos inspirados (como ao cruzar ‘O Meu Amor’, ‘Tango de Nancy’ e ‘Ana de Amsterdam’ – três temas de outras tantas peças) e está imbuído daquele paradoxo que leva a que entendamos as grandes verdades como uma ilusão e que encontremos nas maiores mentiras toda a verosimilhança do real. Está cheio de teatro.

23 de agosto de 2014

Clifford Brown “Brownie Speaks: The Complete Blue Note Recordings” (Blue Note, 2014)



Clifford Brown raramente repetia repertório – não teve sequer tempo para isso. Quando o fazia – com ‘Cherokee’ ou ‘Lover Man’ ou ‘You Go To My Head’ – parecia uma criança a reorganizar blocos de construção, paciente e aplicado, terno e traiçoeiro, infinitamente capaz de sugerir novos padrões a partir da mesma meia-dúzia de objetos, ilimitado quer por material, quer por técnica. Quem o ouvia, tivesse-lhe ou não senioridade, sentia-se instantaneamente de uma geração anterior. Ficou com a entrada enciclopédica delimitada em 1973 quando a Columbia lançou “The Beginning and the End”, a compilação que juntava a sua primeira gravação (em 21 de março de 1952, ao serviço duma banda de r&b) à última (em 25 de junho de 1956, numa loja de instrumentos musicais de Filadélfia, precisamente na véspera de falecer num acidente de viação). E já na altura, nas notas de apresentação do LP, Bruce Lundvall, vice-presidente da editora, escrevia: “Se a sua vida não tivesse terminado tão tragicamente, aos 25 anos, naquela autoestrada do Pensilvânia, o Clifford ter-se-ia tornado o maior trompetista da História do jazz. Aliás, para mim, ele já tinha esse estatuto.” Desde então, a sua discografia tem inchado mas os elogios fúnebres não variam muito. Analistas institucionais louvam-no como uma promessa eternamente adiada, como Richard Cook, em “Blue Note Records: The Biography”. Teóricos mais ferinos, como Kirk Silsbee, no livreto da reedição em CD de “Clifford Brown and Max Roach”, preferem enumerar os beneficiados pelo seu infortúnio, com Miles Davis, normalmente, à cabeça.

O exercício é fútil, ao jeito de quem descreva trocas de galhardetes entre gangues rivais, mas, por exemplo, se em Miles a ternura era com frequência uma ilusão, lembrando a ação de um predador a brincar com uma presa, já Brown foi incapaz de simular sentimentos. Além, claro, de ter sido um prodígio espirométrico e de ter dominado o processo da sua arte como poucos (é impossível não encontrar algo de si naqueles que ocuparam a cadeira que deixou vazia nos Jazz Messengers: de Kenny Dorham e Donald Byrd a Lee Morgan, de Freddie Hubbard e Woody Shaw a Wynton Marsalis). Mas se há especulação que valha a pena fazer, e que a audição desta integral na Blue Note sustenta, é a de que tocou como se o tivessem avisado do tempo que lhe restava. Estão aqui os seus registos de 1953 e 1954 que colecionadores conhecerão por títulos subsequentes: de “The Eminent Jay Jay Johnson, Vol. 1” e “Memorial Album” – que combinou postumamente “New Faces, New Sounds”, de autoria repartida com Lou Donaldson, e “New Star on the Horizon”, em nome próprio – até aos dois volumes de “Art Blakey: A Night at Birdland”. Cada nota sua é tão essencial quanto qualquer uma das palavras com que se relata o começo do mundo. Talvez por isso nunca seja tarde para recordar Clifford.

Herbert von Karajan (Schönberg/Berg/Webern & Sibelius/Grieg/Nielsen)




Schönberg: Verklärte Nacht, Variations for Orchestra, Pelleas und Melisande; Berg: Orchestral Pieces; Webern: Orchestral Pieces; Berliner Philharmoniker, Herbert von Karajan (d), (Deutsche Grammophon, 2014)

Sibelius: Finlandia, the Swan of Tuonela, Tapiola, Pelléas et Mélisande; Grieg: Peer Gynt Suites Nos. 1 & 2; Nielsen: Symphony no. 4; Berliner Philharmoniker, Herbert von Karajan (d) (Deutsche Grammophon, 2014)



Não se vislumbra programa mais adequado ao temperamento de Karajan do que este, que se consagra à Segunda Escola de Viena e que, reunido num triplo CD que reedita originais de 1974, documenta o seu invulgar talento em dissecar criticamente impulsos autoritários. O seu Schönberg é fílmico e climático: os protagonistas de “Noite Transfigurada”, Op. 4, na releitura de 1943, estão debaixo de um borriço que espalha a golpes de vento, descortinando a lua, colocando a esperança à mercê dos movimentos de guilhotina que faz com os braços; até os condenados Pelléas e Mélisande, no homónimo poema sinfónico, Op. 5, inspirado pela peça de Maeterlinck, ficam em animação suspensa, entre ciclos de criação e destruição; as “Variações para Orquestra”, Op. 31, são um assombro técnico, como se, de uma só vez, pudéssemos escutar todos os órgãos que no nosso corpo vão trabalhando em silêncio. Dedicadas a Schönberg foram as “Três Peças para Orquestra”, Op. 6, de Berg. Guiando-nos pela mão e anestesiando-nos os sentidos, Karajan situa-nos no limiar de um pagode envolto em véus de incenso. Em minutos, o ruído é de tal ordem que, mal termina, pensamos ter ficado surdos. Também com Webern é como se tivesse estalado uma guerra junto aos nossos ouvidos: uma visão particularmente antropológica das “Seis Peças para Orquestra”, Op. 6, diria estarem repletas daqueles ominosos momentos em que uma personagem de ficção leva as mãos à cabeça interrogando-se “Meu Deus! O que fomos fazer?”, ainda que se saiba que foram escritas como uma reação ao luto. 

São gestos sutis de efeitos devastadores que estão nos antípodas dessoutros compilados em mais uma caixa agora lançada. Aí, os poemas tonais e sinfónicos de Sibelius, uns supersticiosos, outros supliciados, surgem com a devida camada de verniz e, em “O Cisne de Tuonela”, “Finlandia” ou “Tapiola”, a secção de cordas da orquestra está como uma patinadora no gelo, simulando que é uma leve brisa – e não a mais férrea determinação – que a anima. De Nielsen, está a “Sinfonia Nº 4”, Op. 29, dita ‘A Inextinguível’, com aquele insólito duelo timpânico em que se detetam os canhões da Primeira Grande Guerra. De Grieg, as extintas capacidades de sedução das suítes extraídas a “Peer Gynt”.

Conquanto permitam ambos questionar os limites desses mesmos paradigmas, saltar entre conjuntos de gravações – o segundo foi efetuado entre 1981 e 1984 – é, de certa forma, como passar da periferia do gosto para a da geografia, da ideia de uma Europa para a de uma outra Europa. Pelas suas fronteiras manobrou Karajan de modo ímpar.