16 de agosto de 2014

Keith Jarrett/Charlie Haden “Last Dance” (ECM, 2014)



Acontece, no disco, um par de vezes: Haden abranda, encontra um último fôlego durante a escalada para, depois, solando, ganhar velocidade ribanceira abaixo; Jarrett acompanha-o com cautela pela descida e estende-lhe a mão esquerda; dir-se-ia um diretor desportivo ao volante de um carro de apoio passando um bidão a um ciclista, até que se dissipa a imagem; num pontual estalar de dedos percebe-se que o tempo, afinal, não foi a lado nenhum; ali tinha ficado, hipnotizado por um ato de ilusionismo. No seu melhor, é disso, de transfiguração, que tratam contrabaixista e pianista nestes registos de março de 2007. Ação que o desaparecimento de Haden a 11 de julho torna ainda mais sugestiva. Numa carta entretanto publicada, e que se presume ter redigido logo após a morte do seu destinatário, Jarrett diz: “Charlie… Ias-te enrolando no contrabaixo à medida que tocavas; habitava-lo, fazias amor com ele; e, todos nós, os que te ouviam e que contigo tocavam, era isso mesmo que escutávamos (…). Até quando o consumo de drogas te deixava de rastos era na música que pensavas.” Na proporção exata de empatia que um egomaníaco permite a si próprio, continuava: “Foi um caso raro, um verdadeiro original. A sua afinação era perfeita, tinha um ouvido enorme e possuiu, no jazz, o mais caloroso e cativante tom da história do contrabaixo.” O que diz muito. Principalmente vindo de um homem que tem distribuído elogios ao longo dos anos com a mesma facilidade com que, a cada natal, um tio avarento vai dando prendas aos sobrinhos.

Como já concluiu quem aos dois segue as pegadas, estes duetos começam onde tinham acabado os de “Jasmine” (editado em 2010 mas proveniente das mesmas sessões de gravação). São tão lineares quanto uma estrada num deserto e provocam semelhantes miragens: ouve-se ‘My Old Flame’ ou ‘My Ship’ ou ‘It Might As Well Be Spring’ e dançam no ar os vultos de Mae West, Sarah Vaughan, Billie Holiday, Anita O’Day, June Christy, Ella Fitzgerald; passa-se por ‘Everything Happens To Me’ ou ‘Where Can I Go Without You’ ou ‘Every Time We Say Goodbye’ e esfumam-se no retrovisor os rostos de Frank Sinatra, Helen Merrill, Rosemary Clooney, Peggy Lee, Julie London, Dinah Washington. Algumas canções estão semeadas de silêncios, como um cortejo fúnebre debaixo de chuva. Outras são como aqueles dias de verão que aparentam concentrar toda a felicidade à superfície da terra. ‘‘Round Midnight’, de Monk, e ‘Dance of the Infidels’, de Powell, são levadas a passear ao ar livre – Jarrett não admite falhas ou frustrações e toca-as como um alienista a interpretar distúrbios mentais. Pressente-se aqui o calculismo, a fascinação e a possessividade com que um colecionador de arte admira as peças que adiciona ao seu espólio. Quando delas finalmente desvia o olhar, nunca mais lhes quer pôr a vista em cima.

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