23 de agosto de 2014

Clifford Brown “Brownie Speaks: The Complete Blue Note Recordings” (Blue Note, 2014)



Clifford Brown raramente repetia repertório – não teve sequer tempo para isso. Quando o fazia – com ‘Cherokee’ ou ‘Lover Man’ ou ‘You Go To My Head’ – parecia uma criança a reorganizar blocos de construção, paciente e aplicado, terno e traiçoeiro, infinitamente capaz de sugerir novos padrões a partir da mesma meia-dúzia de objetos, ilimitado quer por material, quer por técnica. Quem o ouvia, tivesse-lhe ou não senioridade, sentia-se instantaneamente de uma geração anterior. Ficou com a entrada enciclopédica delimitada em 1973 quando a Columbia lançou “The Beginning and the End”, a compilação que juntava a sua primeira gravação (em 21 de março de 1952, ao serviço duma banda de r&b) à última (em 25 de junho de 1956, numa loja de instrumentos musicais de Filadélfia, precisamente na véspera de falecer num acidente de viação). E já na altura, nas notas de apresentação do LP, Bruce Lundvall, vice-presidente da editora, escrevia: “Se a sua vida não tivesse terminado tão tragicamente, aos 25 anos, naquela autoestrada do Pensilvânia, o Clifford ter-se-ia tornado o maior trompetista da História do jazz. Aliás, para mim, ele já tinha esse estatuto.” Desde então, a sua discografia tem inchado mas os elogios fúnebres não variam muito. Analistas institucionais louvam-no como uma promessa eternamente adiada, como Richard Cook, em “Blue Note Records: The Biography”. Teóricos mais ferinos, como Kirk Silsbee, no livreto da reedição em CD de “Clifford Brown and Max Roach”, preferem enumerar os beneficiados pelo seu infortúnio, com Miles Davis, normalmente, à cabeça.

O exercício é fútil, ao jeito de quem descreva trocas de galhardetes entre gangues rivais, mas, por exemplo, se em Miles a ternura era com frequência uma ilusão, lembrando a ação de um predador a brincar com uma presa, já Brown foi incapaz de simular sentimentos. Além, claro, de ter sido um prodígio espirométrico e de ter dominado o processo da sua arte como poucos (é impossível não encontrar algo de si naqueles que ocuparam a cadeira que deixou vazia nos Jazz Messengers: de Kenny Dorham e Donald Byrd a Lee Morgan, de Freddie Hubbard e Woody Shaw a Wynton Marsalis). Mas se há especulação que valha a pena fazer, e que a audição desta integral na Blue Note sustenta, é a de que tocou como se o tivessem avisado do tempo que lhe restava. Estão aqui os seus registos de 1953 e 1954 que colecionadores conhecerão por títulos subsequentes: de “The Eminent Jay Jay Johnson, Vol. 1” e “Memorial Album” – que combinou postumamente “New Faces, New Sounds”, de autoria repartida com Lou Donaldson, e “New Star on the Horizon”, em nome próprio – até aos dois volumes de “Art Blakey: A Night at Birdland”. Cada nota sua é tão essencial quanto qualquer uma das palavras com que se relata o começo do mundo. Talvez por isso nunca seja tarde para recordar Clifford.

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