30 de junho de 2018

Gordon: Clouded Yellow (Cantaloupe, 2018)

Há coisa de três, quatro anos, em conversa com o Expresso, David Harrington, o fundador do Kronos Quartet [que toca quinta-feira à noite em Lisboa, nas ruínas do Convento do Carmo], sujeitava a sua ação a modelos de causalidade mais ou menos lineares: “Para mim”, dizia, “seja ela de Tuva, da República Centro-Africana ou de Nova Orleães, a música retém o principal da reação humana ao universo. Foi obviamente individualizada pelas mais diversas circunstâncias, técnicas e práticas, mas remete para um impulso comum: que o mundo se mantenha um local reconhecível não obstante tudo o que de imenso, terrível e contraditoriamente belo sucede nas nossas vidas.” No caso de “Clouded Yellow”, do norte-americano Michael Gordon, poder-se-ia, então, falar de Efeito borboleta – inspirada pelo voo da Colias croceus (mais conhecida por Maravilha), a peça, com um motivo principal em portamento, deixa-se tomar por aquele ágil e aparentemente errático saracoteio com que Muhammad Ali aprendeu a movimentar-se num ringue. Extensível a “Potassium”, é uma prática comum em Gordon – descrevendo-a, um crítico falou no som que um carro faz a ultrapassar outro numa autoestrada. Mas, aqui, tamanha a crueza e aspereza da sua emissão, os membros do Kronos, como num daqueles grupos de power metal, parecem fazer glissandi com palhetas nas cordas de aço de uma guitarra elétrica – o compositor fala num “ato de raspagem”, em fazer rasura ao “som histórico” do quarteto de cordas de modo a começar de novo com o Kronos.

Mas claro que, na vida, por vezes, há acontecimentos que não se conseguem suprir: para tal remete “The Sad Park”, que procede sob a influência dos atentados de 11 de setembro de 2011. À semelhança do Reich de “Different Trains”, também estreado pelo Kronos, surge fascinado pelas características fonológicas do dialeto e parte de um conjunto de gravações de enorme conteúdo dramático: crianças, numa creche, a contar à educadora a sua versão dos factos logo após o sucedido (“Two evil planes broke in little pieces and fire came”, conta uma). Quando a palavra “planes”, manipulada por R. Luke DuBois, que colaborou na peça, se transforma em algo como “plaaeeiiuunss”, numa versão macabra do Efeito Doppler, deixamos de escutar o relato de uma tragédia: a voz é a tragédia.

Agenda: Jazz im Goethe-Garten


Quando quis ver o mundo, o jazz andou de porta em porta, à procura de casa emprestada. Foi assim em 1946, na primeira Australian Jazz Convention, quando meia-dúzia de músicos acompanhou uma excursão rio Yarra acima e se apresentou de armas e bagagens em Eureka Hall, num subúrbio de Ballarat, Vitória. Já com devida pompa e circunstância se receberam Louis Armstrong, Django Reinhardt e Stéphane Grappelli na Ópera de Nice, em 1948, embora a fama tenha ficado toda para as jam sessions no Negresco. Por sua vez, em julho de 1954, foi o casino de Newport, no estado de Rhode Island, a acolher Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Lee Konitz, Eddie Condon, Oscar Peterson, Gerry Mulligan ou Dizzie Gillespie. Cada qual à sua maneira, três eventos que reclamam o título de primeiro Festival de Jazz da História. Claro que, com o passar dos anos, os infinitos desdobramentos e inevitáveis desmultiplicações do seu conceito-chave engendraram programas fadados a soçobrar sob o seu próprio peso: salvo raríssimas exceções, exatamente aquele tipo de atuações incapaz de gerar espanto, desprovido de incerteza e risco e espírito de aventura e que se diria seguir no sentido contrário à deontologia da coisa. Mas desesperar, jamais, como é costume dizer-se. Porque o jazz prospera sempre que alguém atira a prudência pela janela, eis que chega mais uma edição do Jazz im Goethe-Garten ao jardim do Goethe-Institut, em Lisboa: são seis concertos, sempre às 19h, e que arrancam dia 3 com o trio de Gonçalo Almeida, Rodrigo Amado e Marco Franco (na foto, por Vera Marmelo), autor, no ano passado, do extraordinário “The Attic”; dia 4, outro trio, o neologista Chaosophy, devoto do humor mais contrariador; dia 5, o quarteto de Gabriele Mitelli, numa espécie de fluxo de consciência mas também de corrente elétrica; dia 6, o heterónimo Heinz Herbert Trio (dos irmãos Ramon e Domenic Landolt e de Mario Hänni), algo como jazz em transtorno dissociativo; dia 12, o duo de Katharina Ernst e Martin Siewert, que não se deverá ficar pela sua habitual delicadeza de casa de bonecas; dia 13, a encerrar, a casa vem abaixo com os demolidores Gorilla Mask.

23 de junho de 2018

Joe Lovano & Dave Douglas Sound Prints “Scandal” (Greenleaf, 2018)

Lovano e Douglas entraram em estúdio a 4 de setembro de 2017 para gravar este disco, que batizaram “Scandal”. E, de facto, tinha sido um verão perfumado por incontáveis ofensas ao pudor. Bastava seguir o que um títere como Trump dizia pela cimeira do G20, pela visita oficial a Paris ou pela conta de Twitter: o Presidente declarava-se vítima de fraude eleitoral, repudiava Putin, provava-se transfóbico, atacava o ‘Obamacare’, sancionava Maduro, condenava a “violência de ambos os lados” em Charlottesville e ameaçava “fechar o governo” se o Congresso não financiasse o muro ao longo da fronteira mexicana. Mas seria outro escândalo que os músicos tinham em mente: “Nós não estamos a seguir as regras do jazz”, explicava Douglas, num comunicado da sua editora. “O ‘escândalo’ em questão”, prosseguia, “refere-se a esta nossa capacidade de colocar continuamente em causa tudo aquilo que se supõe ser a improvisação”. Até porque, conforme concluía, lidar com o “desconhecido tornou-se hoje tão raro quão arriscado”. Afinal, sempre se está a falar de política. Por isso, porque se trata de alguém que, diz Lovano, “na música e na vida nos inspira a sermos quem somos independentemente das lutas sociais que tenhamos de travar”, mantêm este quinteto sob a tutela artística de Wayner Shorter – a quem agradecem, em notas de apresentação, a “destemida liderança em tempos tão tumultuosos”. 

Aliás, em setembro de 2013, quando Douglas, Lovano, Baron, May Han e Fields tocaram ao vivo pela primeira vez, no Festival de Monterey, estrearam duas peças de Shorter, ‘To Sail Beyond the Sunset’ e ‘Destination Unknown’ – daquelas cujos títulos parecem saídos do diário de bordo da USS Enterprise, quando em “Star Trek” se anunciava que a sua missão era “audaciosamente ir onde nenhum homem alguma vez foi” (alertem-se as feministas: a enfermeira Chapel e a tenente Uhura também faziam parte da tripulação). “É trabalho para uma vida inteira”, dizia Shorter, ao Expresso, em 2014, referindo-se ao facto de ser indispensável entender a “diferença entre o bem e o mal (…) quando se exerce um ofício que nos obriga à total cumplicidade com o momento”. E, depois, tirava a seguinte ilação: “Exprimimo-nos em termos dualísticos mas a mim preocupa-me mais sublinhar o que há de comum em tudo aquilo que nos separa.” Não há maior motor para o que faz, aqui, este quinteto (que, de Shorter, toca ‘JuJu’ e ‘Fee-Fi-Fo-Fum’): cantar em honra dos que insistem em contemplar as estrelas quando passam o dia a olhar para o chão.

Debussy/Fauré: Quatuors (Harmonia Mundi, 2018)

Debussy detestava o adjetivo impressionista. Mas não se queixou quando Eugène Ysaÿe, Mathieu Crickboom, Léon van Hout e Joseph Jacob apresentaram o seu “Quarteto de Cordas” numa galeria de arte de Bruxelas, em março de 1894, rodeados de quadros de Carrière, Renoir, Gauguin, Redon ou Sisley. Imaginam-se as conversas de circunstância: no que ouve, tanto quanto naquilo que vê, o público elogia certamente a vívida intensidade e imediatez, a decomposição da matéria-prima, o desdém pelas regras. Reação diferente tinha a obra gerado em Paris, aquando da sua estreia na Société Nationale de Musique: aí, porventura sem surpresa, dividiram-se as opiniões – e entre a assistência pode ter havido até quem não a tenha considerado suficientemente audaz. Afinal, a apoteótica apresentação do “Quarteto de Cordas” de César Franck três anos antes, pouco antes do compositor falecer, estava ainda fresca na memória de todos. E eis que surgia Debussy a explorar ciclicidade temática de modo semelhante, a recorrer, como o seu predecessor, a quatro andamentos (e Debussy não tornaria a dividir uma obra bem assim) e a articular ideias de maneira análoga à de Franck – não importa se tudo o que os aproxima é exatamente o que serve para os distinguir. 

Dez anos depois, quando Ravel deu a escutar o seu “Quarteto”, os argumentos usados para o comparar com Debussy não foram diferentes dos que serviram para confrontar Debussy e Franck. Será um pouco como pôr a par as personagens de Al Pacino em “O Padrinho: Parte III” e “Perseguido pelo Passado” para chegar à conclusão que são uma só, quando, na realidade, elas pretendem o mesmo: deixar de carregar a História aos ombros como uma fatalidade. Na interpretação do quarteto Jerusalem – porventura a mais conseguida desde aqueloutra do quarteto Ebène, de 2008 – é para isso que se aponta, com uma concentração que não compromete o evanescente charme de cada obra, nem a sua flexibilidade rítmica ou, no fundo, aquilo que tão bem as define: o encantamento da forma.

16 de junho de 2018

Jorge Ben “Jorge Ben” (Elemental, re. 2018)

Em outubro de 1968, no primeiro “Divino, Maravilhoso”, um programa da TV Tupi que dava plenos poderes ao grupo tropicalista e em que Jorge Ben participou, Caetano Veloso canta ‘Saudosismo’: “Eu, você, depois/ Quarta-feira de cinzas no país/ E as notas dissonantes/ Se integraram ao som dos imbecis.” Passados dois meses é preso. O tema é estreado em disco no primeiro álbum a solo de Gal Costa, tinha já Caetano (e Gilberto Gil) saído da prisão. Sem ironia, foi solto a 19 de fevereiro de 1969, numa quarta-feira de cinzas. Em julho parte para o exílio e o seu povo ri e chora como sabe e pode, ao som de três canções em tudo comunicantes e em tudo resistentes à autocomiseração: ‘Atrás do Trio Elétrico’, do próprio Caetano (“Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu/ Quem já botou pra rachar aprendeu/ Que é do outro lado do lado de lá, do lado que é lá do lado de lá”), ‘Aquele Abraço’, de Gilberto Gil (“O Rio de Janeiro continua lindo/ O Rio de Janeiro continua sendo/ O Rio de Janeiro, fevereiro e março/ Alô, alô, Realengo, aquele abraço/ Alô torcida do Flamengo, aquele abraço”) e ‘País Tropical’, de Ben (‘Moro num país tropical/ Abençoado por Deus/ E bonito por natureza/ Em fevereiro tem carnaval/ Tenho um fusca e um violão/ Sou flamengo e tenho uma nega chamada Tereza”). 

No entanto, na altura, com a censura, com a suspensão do habeas corpus, com o Congresso fechado, com a ilegalização das reuniões políticas, enfim, com a total coação dos direitos adquiridos pelos cidadãos, só Ben, que ficou no Brasil, passou por alienado – pior, houve quem o tomasse por colaboracionista. De facto, nunca se prestou muita atenção ao que ele dizia. Mesmo se em ‘Take it Easy My Brother Charles’ declama: “Depois que o primeiro homem/ Maravilhosamente pisou na lua/ Eu me senti com direitos, com princípios/ E dignidade/ De me libertar”. É assim: haverá sempre quem olhe para a ilustração de Albery na capa deste álbum e veja primeiro Barbarella antes de reparar que as correntes de ferro que prendem as manilhas aos pulsos do cantor estão já quebradas. Pois, aqui, solta-se Ben e liberta-se o seu país.