Com “Folk Songs” (1964), Luciano Berio havia já
encostado o ouvido ao chão. E, entre muitas vozes mais, escutou o seu próprio
canto, claro, antes de se deixar possuir por esse seu palimpséstico delírio e de
se pôr a redigir por cima de escritos arménios, azerbaijanos, sicilianos ou
sardenhos até praticamente se perderem de vista os caracteres originais. Mais
tarde, em “Sinfonia” (1968), para preservar a integridade física de uma das
suas mais ameaçadas estruturas, ou, quiçá, para a fazer cair de vez, dedicou-se
à conservação e restauro do cânone ocidental, enxertando a prática
contemporânea com Bach e Berg, Brahms e Boulez ou Stravinsky e Stockhausen,
embora a sua ação lembrasse mais a de um perverso falsário que na reprodução de
uma obra de arte não resistisse a acrescentar elementos espúrios. Agora, em
meados da década de 70, desejava unir esses dois ciclos distintos: de pegar em
algo que parecesse ter começado com a criação do mundo, numa ponta, e em
qualquer coisa vinda de si, noutra, e de lhe dar um valente nó. Sabe-se que no
gira-discos tinha um LP com gravações de campo do etnomusicólogo Simha Arom e
que, no fundo, se sentia como se estivesse a reaprender contraponto com o povo
Banda, uma minoria da República Centro-Africana. E provavelmente tinha na
mesa-de-cabeceira uma antologia de Borges, daquelas em que os narradores crêem
“em infinitas séries de tempos” e “numa rede crescente e vertiginosa de tempos
divergentes, convergentes e paralelos”. Conforme veio a admitir, em entrevista,
tinha em mente uma espécie de assembleia, uma convocação das mais variadas
gentes, “cada qual com a sua própria história, com os seus diferentes amores e
com os seus lares destruídos.” De facto, nos anos de chumbo, assistia ao noticiário,
lia as manchetes e, entre golpes de Estado, conflitos armados, atentados e
ações de guerrilha, via-se rodeado por cadáveres. Não admira que a extravagante
algaraviada de “Coro” se assemelhe à que hoje rodeia o coronavírus: diversas fontes
a quererem falar numa voz unida, quando todo o ruído que produzem apenas serve para
sublinhar o muito que as separa. É essa a sua força. É essa a sua fraqueza.
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
28 de março de 2020
À janela [Agenda virtual]
Em entrevista, há uns bons 25 anos, inquirido
acerca dos seus hábitos de audição caseiros, Cecil Taylor dizia assim: “Escuto
muitas coisas diferentes. Hoje, por exemplo, ouvi música clássica chinesa, cantos
islâmicos e a Orquestra de Duke Ellington, por volta de 1945 – um dos temas era
absolutamente incrível. Ouvi a Victoria de Los Ángeles no ‘Dido e Eneias’, de
Purcell, e, depois, o Gary Graffman a tocar o primeiro andamento do ‘Concerto
para Piano Nº 1’, de Brahms – é qualquer coisa, deixa-me que te diga. A seguir,
fui ouvir a Leontyne Price a cantar a cena final de ‘Salomé’, de Richard
Strauss – bem… foi, assim… wheeew. E,
claro, ouço diariamente qualquer coisa de Ligeti – hoje foi ‘Ramificações’,
outra peça coral qualquer e ‘Atmosferas’. Também ouço todos os dias Marvin Gaye,
como é óbvio. Ainda pus no gira-discos Sarah Vaughan e, por fim, Xenakis, uma
peça orquestral – esse sacana é demais!” Tudo isto, pasme-se, sem que tivesse sido
decretado o estado de emergência, sem que tivesse a sua subsistência, para não
dizer, já, a sua própria sobrevivência, ameaçada e, claro, sem acesso à
internet, o que não é menos espantoso. Imagine-se o que faria com tudo o que
nos é agora subitamente colocado à disposição: talvez começasse pela
vizinhança, dando um salto à página de Facebook de Fred Hersch [na foto], por exemplo,
que à nossa hora do chá tem dado pequenos recitais aos seus seguidores; aí,
talvez tropeçasse em #fightcoronaseries, em redor da qual se têm vindo a
agremiar músicos de todo o mundo, aproveitando para amaldiçoar pela primeira
vez o seu fornecedor de banda larga; nesse domínio é provável que recebesse uma
chamada de atenção para a “Spring 2020 Jazz Series”, da Firehouse 12, em
transmissão exclusiva no canal de YouTube da sala (em abril, estão agendadas atuações
de Allison Miller e Carmen Staaf, Daniel Levin e Mat Maneri, de Lioness e do
sexteto de Allen Lowe); mas, conhecendo os seus gostos, seria muitíssimo
provável que, hoje, despedindo-se de Hersch, se ligasse ao site da Ópera de Viena para apanhar a retransmissão gratuita de “O Crepúsculo dos Deuses”, de
Wagner, e que, amanhã, à meia-noite, acedesse ao da 92|Y para ver e ouvir
Anthony de Mare a tocar Stephen Sondheim ao vivo; ao longo da semana,
assistiria aos Nightly Met Opera Streams e perder-se-ia nos arquivos
escancarados do Wigmore Hall, da Ópera de Berlim e da Filarmónica de Berlim ou na plataforma Marquee TV; além de que, no Twitter ou
Instagram, instrumentistas como Yo-Yo Ma, Gautier Capuçon, Igor Levit ou Alisa Weilerstein descobriram o televangelista que tinham em si – raios partam, que
isto está mais para o Sol e Dó do que para a solidão! Apesar das indicações em
contrário, é o que tenho sentido nos últimos dias, sentado ao computador, a
abrir janelas atrás de janelas até me vir à memória aquela canção do Roberto –
‘À Janela’, precisamente – em que ele cantava “Quantas vezes eu pensei sair de
casa/ Mas eu desisti/ Pois, eu sei, lá fora eu não teria/ O que eu tenho agora
aqui” e me tentar convencer de que o que ele diz é verdade.
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21 de março de 2020
Schoenberg: Violin Concerto; Verklärte Nacht (Harmonia Mundi, 2020)
Certo. Os tempos estão mais para Manuel Bandeira: “Noite
morta// Junto ao poste de iluminação/ Os sapos engolem mosquitos// Ninguém
passa na estrada/ Nem um bêbado.” Se prestarmos bem atenção, claro, o caso muda
de figura, pois até numa rua deserta espreitam as “Sombras [dos] que passaram/
[Dos] que ainda vivem e [dos] que morreram.” Duas delas, não inteiramente sós,
foram protagonistas de “A Noite Transfigurada” (1899): numa noite de intenso luar,
passeando por um bosque nu, uma mulher, grávida, confessa ao companheiro
carregar o fruto de outro no seu ventre; perdoando-a facilmente, ele pede-lhe
que veja como o universo em seu redor cintila, como tudo refulge, como o calor
profundo que deles irradia vai transfigurar essa criança, de filho ilegítimo de
um estranho a filho legítimo dos dois. Assim rezava o poema de Richard Dehmel, à
volta do qual Schoenberg teceu uma finíssima teia em que se diria querer apanhar
um outro casal: Wagner e Brahms, que desejava completamente purgar das maleitas
do fin de siècle. Conforme viria a
escrever, anos depois, a tonalidade era uma vítima de “incesto” – era “sentimental”,
“cosmopolita”, “consanguínea”, “efeminada”, “hermafrodita”, cheia de acordes “vira-casacas”
que se adaptavam a qualquer situação. E como é difícil pegar neste peça sem
pensar neste triste vocabulário, sem proceder à autópsia de um organismo
consumido pelo vírus da degeneração, que é, mais ou menos, como Schoenberg via
o que imediatamente o precedeu. Nas infalíveis mãos de Faust, na sua versão
para sexteto (em cuja interpretação, por sinal, figura, ao violoncelo, Jean-Guihen
Queyras, que, em 2014, com o Ensemble Resonanz, participou no último registo
digno de nota da peça), e tal o seu à-vontade neste material, o drama do casal
é não só inteiramente compreensível como eminentemente credível: o que Schoenberg
apresenta como problema (afinal, o bastardo da tonalidade era ele) é aqui visto
como uma solução. O mesmo se aplica ao “Concerto para Violino” (1936), com a
alemã a deixar-se arrebatar pelas excêntricas órbitas que o compositor desenhou
em torno do eixo fixo da razão – em noites mortas, não há melhores.
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Rossi: La Lyra d’Orfeo – Arpa Davidica (Erato, 2019)
Em “Mostro con l’ali nere”, toda ela contrária à
ordem regular da natureza, com serpentes em vez de cabelos, gelada ao toque e
escura como o breu, uma agoirenta criatura levanta voo do inferno, pronta a
ofuscar o esplendor do céu. Calma, que é do vírus do ciúme que esta cantata de
Luigi Rossi trata. No contexto da sua oportuníssima produção, aliás, apenas um
dos muitos mal-estares suscetíveis de cura pela música. Observe-se com atenção
“Al soave spirar”, por exemplo: numa embarcação, de regresso a casa, e após uma
longa travessia, o protagonista vê-se perante um saque, cercado por amotinados marinheiros
que a avidez do lucro cegou; desesperado, enraivecido, suplicante, lamentando
tamanho infortúnio, pede que o acudam e, depois, que o vinguem, até que, a
custo, recupera a dignidade, faz a apologia da perseverança e, cantando, se lança
ao mar e para a morte; nesse derradeiro momento, movido pela compaixão, um
golfinho condu-lo no seu dorso, são e salvo, até à costa. Como é óbvio, Rossi
apresentava uma variação sobre a lenda grega de Aríon em ligação direta à moral
da história: se sons tão harmoniosos conseguem fazer isto, não há realmente
limite às desgraças que uma bela melodia pode mitigar. Esqueceu-se, só, de dizer
que Aríon empunhava uma lira, o que, neste enquadramento, não é estritamente
necessário: aqui, de forma a encadear estas canções (21 delas em primeira
gravação), Pluhar [na foto] procede à invocação de Orfeu e de David.
Basta pensar num, com
os argonautas, a sobrepor a sua voz à das sereias (“Navegar é preciso/ Viver
não é preciso”, quase se ouve), e noutro, dedilhando uma harpa, a aliviar o sofrimento
de Saul (no caso, é o ‘Hallelujah’, de Cohen, que logo vem à memória), para se
perceber que – placebo, profilático ou paliativo – o disco dá resposta a uma
crise. E, girando, como tantos, na órbita do Cardeal Jules Mazarin, depois do
Conclave de 1644, a verdade é que a principal preocupação de Rossi seria
afastar-se dos Estados Papais e procurar abrigo na corte francesa – hoje, é
inconcebível que as suas reflexões sobre amor sagrado e profano surgissem
condicionadas pela rivalidade franco-habsburguiana. Mas, não fosse a sua
capacidade em transpor esses contraditórios impulsos do campo dos afetos para o
da política – muita da sua obra obedece à lógica da guerra dos sexos – e
sabe-se lá se teria vindo a ser tão apreciado por Luís XIV! Seja como for, o
ponto não é esse. O que interessa é o que se escuta em “Se dolente e flebil
cetra”: que se lhe “parte o coração”, e não se lhe “calam os ais”, se o cantar
da sua cítara não inspirar a piedade de que tanto precisa. Ora, isto é fado.
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14 de março de 2020
Tim Berne's Snakeoil “The Fantastic Mrs. 10” (Intakt, 2020)
Há coisa de 20 anos, numa esplanada de Lucerna, conversava
com Stefan Winter acerca de Tim Berne e da dificuldade em manter músicos destes
presos a uma estrutura editorial: “Ah, o Tim é um perfeito rebelde”, dizia-me. “Tocava
em alguns dos álbuns que eu produzia na JMT, gravava para a CBS, mas falavas com
ele e percebias que se tratava de alguém que gostava de manter as opções em
aberto. Extremamente focado, mas muito livre, também. Entre 1989 e 1995, por
aí, trabalhámos mais um com o outro e ainda me acompanhou na transição para a
Winter & Winter. Ele tinha objetivos bem traçados. O problema é que se aborrecia
depressa e não era nada fácil seguir-lhe o ritmo.” Pois, aos 65 anos, Berne muda-se
de armas e bagagens da ECM para a Intakt.
No contexto dos Snakeoil, mantendo-se o núcleo duro de Matt Mitchell
(piano), Oscar Noriega (clarinete baixo) e Ches Smith (bateria) [na foto], não é, no
entanto, a única alteração digna de nota, ou sequer a mais importante: aqui, o
guitarrista Marc Ducret substitui Ryan Ferreira. De repente, de facto, até
parece que voltámos aos tempos da JMT, quando Berne e Ducret lançavam “Pace
Yourself” (1991) com os Caos Totale, serviam de catalisador à música de Julius
Hemphill em “Diminutive Mysteries” (1993) e com os Bloodcount mudavam de sítio
as partes do corpo do jazz moderno nos três seminais volumes de “The Paris
Concert” (1995) – o seu impacto foi devastador, mas, como um tema deles dizia, ‘It
Could Have Been a Lot Worse’.
Agora, incluindo em ‘Dear Friend’, de Hemphill, a
intenção de Berne ao recorrer a Ducret era a de deitar areia na engrenagem:
“[Introduzir] uma personagem nova põe toda a gente em sentido”, confessa, em
notas de apresentação. Sim, realmente: basta pensar no Negan de “The Walking
Dead” ou no Ramsay Bolton de “A Guerra dos Tronos”. Tudo isto, porque, como dizia
Henry Hill (Ray Liotta) de James Conway (Robert De Niro), em “Tudo Bons
Rapazes”, estamos com certeza a lidar com aquele “tipo de pessoa que nos filmes
se põe a torcer pelo mau da fita”. Neste “The Fantastic Mrs. 10” não há uma
linha reta – aliás, ouvindo-o, imaginam-se os músicos dobrados sobre si mesmos
a dar expressão àquele paradoxo que diz que “um atalho é sempre a distância mais
longa entre dois pontos”. Em partes iguais repressivo e catártico, sério, grave,
mas capaz de falar na língua das chamas, de âmago inviolável mas ímpio, o disco
devora contradições. A maior? Mostrar o que faz um apóstata quando se vê
rodeado de apóstolos. Como escreveu Richard Howard, num poema: “[Aos 65] pára de
esperar/ Vira-te para trás/ E […] ficarás espantado ao entender que a memória é
infinita/ A vida, longa/ E tu/ Tu, afinal, és imortal.” Para banha da cobra não
está mau.
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