É uma obra marcada pela alusão, pela elisão, pela
ilusão, tão simples e complicada quanto aprender a dizer as vogais. Às vezes
põe-se quieta, e parece esconder-se ou, então, que dorme e sonha com sons
distantes num canto qualquer. Terá sido como reação a conclusões destas que, em
entrevista à “Seismograf”, em 2018, Bent Sorensen disse assim: “É verdade que a
minha música do século XX passa frequentemente por pianissimos e registos agudos. Mas sinto que estou a fazê-la
aproximar-se mais do registo grave e dos fortissimos.
Se calhar tinha medo que desaparecesse de vez!” Pois: é o dilema de todo o
eremita que se preze, quando se apercebe que alhear-se dos outros, perder-se do
mundo e perder-se para o mundo, na prática, serve mais para esbulhar o
humanismo do que propriamente para o engrandecer. “Certa vez compus uma peça
chamada ‘Cortejo Fúnebre’”, continuava o dinamarquês. “A combinação desse
título com uma música muito suave fez com que na cabeça de muita gente ela se
tornasse uma espécie de assinatura minha. Mas eu não estava deprimido quando a
escrevi. Nunca fui um desses compositores de romantismo do adro da igreja!”
Seja como for, há seguramente quem tenha a tendência de falar em voz baixa nas
imediações das suas partituras. Escutando “La Mattina”, “Serenidad” e “Trumpet
Concerto”, que, em estreia, Leif Ove Andsnes (piano), Martin Fröst (clarinete)
e Tine Thing Helseth (trompete) respetivamente nos trazem (o primeiro e a
última com a Orquestra de Câmara Norueguesa e o maestro Per Kristian Skalstad;
o do meio com a Orquestra Sinfónica Dinamarquesa dirigida por Thomas
Sondergard), até se aconselha a circunspeção, não se vá perder tudo aquilo que entre
parênteses, sussurros e surdinas têm para nos dizer – por outro lado, confirma-se
que estas já não são bem aquelas típicas pautas de Sorensen que se diriam
entremeadas por páginas de pergaminho medieval, emaciadas pela gordura dos
dedos, embaciadas pela cera derretida, com a luz de lamparinas de azeite a
projetar fantasmas de eras remotas nas paredes. Aliás, o concerto para piano
teve a sua génese num bar chamado Broadway e podia chamar-se ‘In the Wee Small
Hours of the Morning’. Fica a dica!
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
27 de junho de 2020
Sorensen: Concertos (Dacapo, 2020)
John Scofield, Bill Stewart, Steve Swallow “Swallow Tales” (ECM, 2020)
Na sua antologia de poesia grega clássica,
Yourcenar chama-lhe “Chanson de Rhodes”, mas no Egeu é conhecida como “Canção
da Andorinha” e acaba assim: “Abre, abre a porta à andorinha/ Não somos velhacos,
somos meninos!” Tal a diabrura destas pautas, bem podia ser o mote desta
homenagem de Scofield a um velho mentor: Steve Swallow – e só não lhe deu o
título de “Swallow Songs”, presume-se, porque a Bohuslän Big Band se lhe antecipou,
em 2008. Seja como for, o ponto é esse: associar esta música ao despertar da primavera
(em inglês – relembre-se – swallow traduz-se
por andorinha), coisa que não se via esta gente a fazer (Bill Stewart que nos
perdoe) desde que em “This Meets That” (EmArcy, 2007) teve a infeliz ideia de tocar
‘House of the Rising Sun’ e ‘(I Can’t Get No) Satisfaction’. Mas nada disso
importa muito, quando se faz música assim – aliás, tivéssemos em mãos um disco
póstumo, já nos estava a ver a fazer coro com Carlos do Carmo e a cantar: “Por
morrer uma andorinha/ Não acaba a primavera”. Além de que é Scofield quem traz
o assunto à baila: “Conheço grande parte destas canções há uns bons 40 anos,” diz.
Em notas de apresentação, refere-se ao tempo em que estudava em Berklee, quando
o “Real Book” (com standards e peças de
Swallow, Paul Bley, Chick Corea, Pat Metheny ou Steve Kuhn) andava de mão em
mão entre os alunos (ou de fotocopiadora em fotocopiadora, para ser exato), “nerds do jazz que tentavam aprender a
todo o custo”, recorda. Trata-se de uma maneira de ver as coisas – outra, não
menos fundamental, e inúmeras vezes comprovada no passado, é que, neste
contexto, o mentor não possui menor fascínio e admiração pelas capacidades
expressivas do mentorado. Num depoimento incluído em materiais promocionais da
ECM, eles sintetizam-no de modo perfeitamente osmótico: “Por vezes, quando
tocamos em conjunto, parece que temos em mãos um só instrumento”, uma guitarra
aumentada. Em versões definitivas de ‘Falling Grace’, ‘Portsmouth Figurations’,
‘Eiderdown’ ou ‘Hullo, Bolinas’, anteriormente imortalizados por Gary Burton ou
Bill Evans, é desta que, como a andorinha de “O Príncipe Feliz”, de Oscar
Wilde, Swallow vai parar ao paraíso.
20 de junho de 2020
Gesualdo: Tenebrae (Glossa, 2020)
Em notas de apresentação, o esloveno Mladen Dolar relembra
que há algo de “profundamente perturbador e inescrutável” na música de Carlo Gesualdo
(1566-1613), e nestes “Responsórios
para o Ofício de Trevas da Semana Santa” em particular: “É como se a sua
obra, perfeitamente integrada no
quadro litúrgico [do seu tempo], e derivada do canto gregoriano, fosse impelida
a ultrapassar as suas fronteiras e a transgredir a sua época e o seu contexto,”
diz. Depois, claro está, em breves traços biográficos, defende aquela espécie de
desígnio penitencial que a enquadra, e o que salta à memória é o gótico sotaque
de Werner Herzog, nos comentários de “Death for Five Voices” (1995): “Gesualdo
viveu os seus últimos 16 anos de vida neste castelo, isolado, atormentado,
dilacerado, perseguido por demónios. Os seus madrigais são a expressão de um
mundo espiritual mergulhado em loucura”. Parece Bram Stoker. Tudo, conforme formulou
Julio Cortázar, porque “encontrou a sua mulher na cama com outro homem e os
matou” – bom, também os mutilou, é certo, o que na altura, no mínimo, teria
sido razão para uma equipa da CMTV ir ao local. Mas, não importa – ao descrever
as ousadias formais de Gesualdo, aquela espécie de cromatismo em estado gasoso
de que se socorria, o seu tratamento do texto, que obriga a instalar uma
máquina de criptografia nos ouvidos, a pulverização da consonância, mais
esgarçada que as calças de ganga de adolescentes, etc., Dolar, Herzog e Cortázar
convocam toda e qualquer futilidade ao seu alcance para fazer de Hamlet e exclamar:
“O mundo está fora dos eixos!” Em “As Portas da Percepção”, de Huxley, que
nenhum deles citou, tudo isto é fruto da psicose da contrarreforma: “Mas pouco
importa que [seja uma obra] em pedaços. O conjunto pode ser caótico, mas cada
fragmento individual está no sítio certo, em representação de uma Ordem
Superior, que prevalece.” Coincidentia
oppositorum, dizia-se. “Portanto, a desintegração pode ter as suas
vantagens. Mas é perigosa. E se não encontramos o caminho de volta?” Pois, após
decompor a obra de Gesualdo em finas partículas, o Graindelavoix volta a aglomerá-la
num sinal de Saída.
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