Orlando di Lasso (1530-1594) – também conhecido por
Orlande de Lassus, Roland de Lassus, Orlandus Lassus, Roland de Lattre, Orlande
de Lattre ou, como lhe chamou o poeta Pierre de Ronsard, “o mais que divino
Orlando” (realmente, mais Orlandos só no romance de Virginia Woolf, mas esses
ainda tiveram a desculpa de viver 300 anos!). Seja como for, aqui incluído, um
moteto há que todos eles reúne: “Recordare, Jesu pie”, a obra final do
derradeiro opúsculo do compositor, em que identificando a exaustão de Cristo se
ilustra o artifício catabático da mitologia grega (o ato de baixar aos infernos)
por via de uma série de progressões descendentes que só uma vez se contraria –
é em “Quaerens me, sedisti lassus/ Redemisti crucem passus/ Tantus labor non
sit cassus”, quando Lasso inebria e pincela com a cor das coisas imortais, das
coisas incorruptíveis, com o clamor de toda uma vida, a palavra lassus,
justamente. Doente crónico (sem querer abusar do latim, era na altura tratado para
a melancholia hypocondriaca), com o país em revolta, não admira que tomasse
como sua a lassidão do Senhor e também ele perguntasse se não seria em vão o
seu labor, depois de, num fôlego extremo, e por intermédio de uma só palavra,
passar o mel pelos lábios uma última vez. Consciente da radical insuficiência
da espécie, marcado por paradoxos, enigmas e repetições, encadeado por um
clarão de ilusões, lúcido e inconformado em partes iguais, é assim este Lasso
crepuscular que o Cappella Amsterdam põe a circular pelo mundo dos mortos (“Escuta,
Terra! Escutem, confins do vasto mar!/ Tudo o que vive debaixo do sol: escutai!/
A beleza, a glória deste mundo/ Quão falsas e efémeras são”, ouve-se, em “Audi
tellus”, com um ousadíssimo arrepio harmónico em “falsas”, símbolo daquilo que
não é mencionado mas cujo poder está entre nós). Pois, é o que dá dormir com o
livro de Eclesiastes na mesa-de-cabeceira, do qual extraía: “E mais felizes que
uns e outros [mortos e vivos] são os que nunca chegaram à existência e não
viram o mal que se comete debaixo do sol.” Ou: “Para tudo há um momento/ E
tempo para cada coisa debaixo do céu/ Tempo para nascer e tempo para morrer.” ‘Turn!
Turn! Turn!’, cantariam os Byrds. Já Lasso, não cantaria mais.
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
24 de julho de 2020
Sharhabil Ahmed “The King Of Sudanese Jazz” (Habibi Funk, 2020)
No Sudão, foi há coisa de um ano que as vozes
acordaram daquela espécie de coma induzido em que a única aproximação possível
à música era a que derivava do tajwîd (isto é, da leitura do Corão no sotaque de Maomé). Desde então, não
cessam os milagres: o executivo do recém-empossado Abdallah Hamdok incluiu na
sua composição duas mulheres (que já podem ir de calças para o escritório, se
quiserem); a mutilação genital feminina foi, enfim, criminalizada; a apostasia,
descriminalizada; o país, esse, galgou posições no Índice de Liberdade de
Imprensa; e a reforma do código penal em curso até permite que cristãos se
possam encontrar ao final da tarde para beber um copo! De facto, consagrado a
gravações de Sharhabil Ahmed na década de 60, nomeadamente às que coincidiram
com o regime democrático, entre 1964 e 1969, este “The King of Sudanese Jazz”
não podia ter chegado em melhor hora. Curiosamente, segundo o seu editor, Jannis Stürtz, já vem tarde – o problema, conta, em notas de apresentação, é
que demorou cinco anos a encontrar registos de som que pudesse utilizar como
referência (aos quatro excecionais temas que se conheciam de Ahmed – de
Sharnbil and his Band, alguns – somou outros três, não menos extraordinários). Provêm
de um tempo em que um punhado de rebeldes trocou as liras e os alaúdes pelas
guitarras elétricas e os baixos, as pandeiretas por tarolas e pratos de choque,
os coros por saxofones e trompetas e, pasme-se, não fez, com isso, que o Nilo
Branco e o Nilo Azul se deixassem de encontrar em Cartum – ao jeito de Mohammed
Rafi, na mesma altura, em ‘Jaan Pehechan Ho’ (um tema de rock’n’roll tão básico
e bizarro que só podia vir de Bollywood). Aliás, alguns dos recursos então em
voga no ocidente são aqui reproduzidos de modo tão caricato que se diria virem pôr
a nu um paradoxo elementar: não são os instrumentistas sudaneses que estão a
interpretar mal Ray Charles, digamos; foi Ray Charles que se traiu e absorveu
menos bem na sua produção os ensinamentos da música africana. Ouvindo “The King
of Sudanese Jazz”, é bem capaz de ser assim.
18 de julho de 2020
Feinberg: Piano Sonatas Nos. 1-6 (Hyperion, 2020)
Dir-se-ia ter vivido sob a égide do excecionalismo
– e de certa maneira viveu, como tantos dos seus compatriotas. Mas, enquanto
professor, compositor e intérprete, ainda que postumamente, Samuil Feinberg
(1890-1962) quis pôr os pontos nos is: “Dizem que a trajetória artística obedece
a coordenadas saídas do inconsciente, que assenta na intuição e que, por isso,
em tudo difere do caminho e do comportamento do comum dos mortais, como um
cometa errante a rasgar as órbitas circulares dos planetas”, escreveu ele num
compêndio de pedagogia editado em 1965, em Moscovo. “No entanto,” concluía,
“tal como no mapa astral se consegue traçar a órbita de um cometa, também entre
os criadores e no mais instintivo dos domínios se pode detetar a lógica
intrínseca ao conjunto das interações artísticas.” Estava a falar de si, claro,
e daqueles que como ele divergiam da estética oficial conforme a prescrevia o
regime soviético, entenda-se, e iam tendo a respetiva obra silenciada, quando
não era pior – revolucionários do tipo errado. Ainda que tardia, era a reação
possível ao que dele (e destas suas extraordinárias sonatas para piano,
compostas entre 1915 e 1923) se dizia desde que Leonid Sabaneyev incluiu estes
comentários em “Compositores Russos Modernos”: “Feinberg é sobretudo um
compositor de harmonias e ritmos. Não é, de todo, melodista – nesse capítulo é
frequentemente rudimentar e incompreensível. O tecido musical é hesitante e
turbulento. As suas obras são uma espécie de tempestade, de redemoinho, não
propriamente música. Enquanto compositor, ignora os tempos lentos. As suas
visões estão sempre à beira do precipício e, como tal, trazem à memória as
alucinações e delírios de um doente.” Ah, convém lembrar que Sabaneyev era um
defensor obstinado de Feinberg – imagine-se o que diria quem não fosse. O elo
perdido entre Scriabin e Prokofiev (conforme caracterização de Robert Rimm, em
“The Composer-Pianists”), Feinberg depressa se desapegou da volúpia e do
arrebatamento: na devastadora “Sonata para Piano Nº 6” cada recapitulação do
motivo lírico é, de facto, uma capitulação – os sinos a dobrar pelas vítimas da
insensatez, como ele.
Nkem Njoku & Ozzobia Brothers “Ozobia Special” (BBE, re. 2020)
Há uns meses, à “Ransom Note”, John Armstrong
explicava o segredo do sucesso de Chief Tabansi, alguém que à frente de um
pequeno selo independente havia indelevelmente marcado a indústria fonográfica
nigeriana dos anos 70 e 80: “Ele tinha o seu próprio estúdio de gravação, a sua
própria empresa de fabrico e duplicação de vinis e o seu próprio canal de
distribuição – uma carrinha, através da qual, desde Onitsha, percorria o país
de lés a lés,” de Lagos, onde vendia discos de fuji aos iorubas, à fronteira com o Níger, por exemplo, onde vendia
música árabe aos haúças. De facto, não seria para qualquer um. Mas o que o DJ e
produtor britânico responsável pela presente campanha de reedições da Tabansi,
na BBE, desconhecerá, quiçá, é que o fundador da editora não tinha a vida,
assim, tão complicada quanto isso: pelo menos a partir de 1979, quando Shehu
Shagari interditou a importação de discos (uma medida protecionista que levou a
que no ano seguinte se viessem a produzir 12 milhões de singles e LP na Nigéria, metade dos quais dedicados a estilos
nacionais, conforme explica John Collins, em “Musicmakers of West Africa”). O
que terá sido o empurrão que faltava para que a Tabansi promovesse uma ressurreição
cultural: a do highlife ibo, cujos
expoentes (Stephen Osita Osadebe, Celestine Ukwu, Nico Mbarga, Oriental
Brothers) estavam nas mãos de multinacionais como a Philips e a Decca, prestes
a ser nacionalizadas ou em contrapartida a ter de abandonar o barco. E, com
Jake Sollo à frente das operações (ele, que, dez anos antes, em plena Guerra do
Biafra, animava as tropas secessionistas com os Funkees, antes de viajar para
uma Inglaterra em que o esperava de braços abertos John Peel), tratar de
atualizar o mais leve e lúdico no género para esse período hedonista em que nas
discotecas os temas mais pedidos eram o ‘Boogie Oogie Oogie’, de A Taste of
Honey, e o ‘Boogie Wonderland’, dos Earth, Wind & Fire. Aqui, com o mesmo
Nkem Njoku com que viria a gravar “Man No Good” (1986), está plasmada a esperança com
que Sollo e uma minoria tão perseguida reagiam aos avanços democráticos de um país
que temiam não ser para si. Mas foi, ainda que só por uma noite.
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11 de julho de 2020
Schumann/Mendelssohn: Piano Trios (Hyperion, 2020)
Schumann e Mendelssohn. Está certo, sim senhor,
desde que se permita ao bico do lápis vermelho do patriarcado ir ali
acrescentar um asterisco, pois é de Clara Schumann (1819-1896) e de Fanny Mendelssohn
(1805-1847) que se fala – ah, se ao menos sucessivas gerações de censores
tivessem usado a outra ponta do lápis para tirar a cera dos ouvidos! Mas o mal
estava feito – e mesmo quando se repara na obra que deixaram, o que é raro, se
aproveita para distinguir o sal das oportunidades perdidas quando seria mais vantajoso
detetar os níveis elevados de glicose que a caracterizam. Pois, nada dava mais
satisfação a Clara que uma tarde passada a compor, absorta, esquecida de si, a
“respirar por entre as esferas dos tons”, enquanto Fanny se sentiu “renascida”
quando viu finalmente concretizado este seu trio – infelizmente, um ano depois
estava morta; e de Clara, por sua vez, não consta que tivesse tempos livres
(conforme notou no seu diário, citado por Monica Steegmann, em biografia: “Nem
uma horinha, o dia todo, tenho para mim!”). Não sai da lembrança de Clara que é
mulher de Robert Schumann, nem de Fanny que é irmã de Felix Mendelssohn, por
isso não admira que, quer uma, quer outra, nestes trios para piano, violino e
violoncelo, fizesse das pautas uma marquesa e se dedicasse a aliviar toda a dor,
toda a tensão e ansiedade que logo, aqui, às primeiras notas se acumula. Na sua
vida privada, por sinal escritas mais ou menos na mesma altura, são obras que
possuem eco num par de cartas: uma de Clara, quando admitiu que não podia, “de
maneira nenhuma, abandonar” a sua arte, ou correria o risco de se “arrepender
para sempre”; outra de Fanny, que dizia a Felix que se podia rir dela à
vontade, se assim entendesse, que não seria por isso que ela deixaria de ter “tanto
medo dos [seus] irmãos, aos 40, quanto havia tido do pai, aos 14”. Quem o
conta, em pormenor, é Anna Beer, em “Sounds and Sweet Airs: The Forgotten Women
of Classical Music”, tão apologista da igualdade de género que só lhe falta afirmar
que isto foi como um espartilho que se lhes rebentou. Mas foi.
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