4 de julho de 2020

Le Jeune: Le Printemps (Évidence, 2020)

Ufa, que, afinal, sempre se safa alguma coisa da coleção Primavera/Verão de 2020, como este “Le Printemps” atesta – aliás, a interpretação do Gilles Binchois é tão arejada que admira que as últimas normas da DGS não a mencionem. Enfim, cala-te boca, que, na senda do que fizeram os serviços de streaming a “E Tudo o Vento Levou”, qualquer dia têm discos destes a sair com uma advertência na capa: no âmbito da infeção por covid-19, as personagens de “A Primavera”, de Sandro Botticelli, ignoram a Orientação nº 010/2020 relativa a “Distanciamento Social e Isolamento”. De facto, à lupa, ali, no lado direito da imagem, basta ver a reação de Clóris a Zéfiro quando este lhe sopra ao ouvido. Tudo isto, claro, porque Le Jeune não se destacou propriamente pela estrita observância das restrições do seu tempo – muito pelo contrário, de tanto querer pôr os ponteiros do relógio a andar para trás, atingia um paradoxo atrás do outro. Em 1570, em Paris, nas reuniões da recém-formada Academia de Poesia e Música, não é difícil imaginá-lo a petiscar umas azeitonas, uns figos ou umas passas, com Jean-Antoine de Baïf e Joachim Thibault de Courville, enquanto não vem a sopa de lentilhas com molho de peixe, que acompanha com pão de cevada e rega com ânforas de vinho tinto, antes de recitar a “Ode à Primavera”, de Horácio: “Foram-se as neves e aos campos já a relva regressa/ e às árvores a folhagem/ A terra muda a sua face, e, deixando as margens/ os rios decrescem// Uma Graça mais as duas irmãs, nuas, ousam dançar/ com as Ninfas/ Não esperes pela imortalidade, adverte-te o ano e a hora/ que arrebata o dia […].” Quando esta “A Primavera”, com poemas de Baïf, foi postumamente publicada, em 1603, Nicolas Rapin, no prefácio, incluiu um postal arcádico: “Ninguém soube pautar a cadência do canto [das musas, como Claude Le Jeune]. Nem ninguém, como ele, fez com tão doce deleite tantas cócegas nos nossos sentidos” – precisa, mas de movimentos algo descontrolados, homofónica, mas melismática como a flauta do amolador, não há melhor descrição para a sua obra.

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