24 de julho de 2020

Lassus: Inferno (Harmonia Mundi, 2020)

Orlando di Lasso (1530-1594) – também conhecido por Orlande de Lassus, Roland de Lassus, Orlandus Lassus, Roland de Lattre, Orlande de Lattre ou, como lhe chamou o poeta Pierre de Ronsard, “o mais que divino Orlando” (realmente, mais Orlandos só no romance de Virginia Woolf, mas esses ainda tiveram a desculpa de viver 300 anos!). Seja como for, aqui incluído, um moteto há que todos eles reúne: “Recordare, Jesu pie”, a obra final do derradeiro opúsculo do compositor, em que identificando a exaustão de Cristo se ilustra o artifício catabático da mitologia grega (o ato de baixar aos infernos) por via de uma série de progressões descendentes que só uma vez se contraria – é em “Quaerens me, sedisti lassus/ Redemisti crucem passus/ Tantus labor non sit cassus”, quando Lasso inebria e pincela com a cor das coisas imortais, das coisas incorruptíveis, com o clamor de toda uma vida, a palavra lassus, justamente. Doente crónico (sem querer abusar do latim, era na altura tratado para a melancholia hypocondriaca), com o país em revolta, não admira que tomasse como sua a lassidão do Senhor e também ele perguntasse se não seria em vão o seu labor, depois de, num fôlego extremo, e por intermédio de uma só palavra, passar o mel pelos lábios uma última vez. Consciente da radical insuficiência da espécie, marcado por paradoxos, enigmas e repetições, encadeado por um clarão de ilusões, lúcido e inconformado em partes iguais, é assim este Lasso crepuscular que o Cappella Amsterdam põe a circular pelo mundo dos mortos (“Escuta, Terra! Escutem, confins do vasto mar!/ Tudo o que vive debaixo do sol: escutai!/ A beleza, a glória deste mundo/ Quão falsas e efémeras são”, ouve-se, em “Audi tellus”, com um ousadíssimo arrepio harmónico em “falsas”, símbolo daquilo que não é mencionado mas cujo poder está entre nós). Pois, é o que dá dormir com o livro de Eclesiastes na mesa-de-cabeceira, do qual extraía: “E mais felizes que uns e outros [mortos e vivos] são os que nunca chegaram à existência e não viram o mal que se comete debaixo do sol.” Ou: “Para tudo há um momento/ E tempo para cada coisa debaixo do céu/ Tempo para nascer e tempo para morrer.” ‘Turn! Turn! Turn!’, cantariam os Byrds. Já Lasso, não cantaria mais.

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